domingo, 3 de julho de 2011

A Hora do Coroa

Postado por Acir Antão on domingo, julho 03, 2011 with Faça um comentário
Homenagem para Wilson Batista, textos de Raphael Vidigal




Quem foi, afinal de contas, Wilson Batista? O homem por trás de sucessos que pouco colocou a voz para ser ouvida em disco? O profícuo compositor, do interior do Rio de Janeiro, que fez carreira como galante dos bares da Lapa e da Esquina do Pecado? O rival de Noel Rosa, com quem alimentou polêmica acima de conceituações musicais? Ou mesmo malandro de terno branco e navalha no bolso? Nenhuma dessas hipóteses corresponde inteiramente ao caráter do autor de “Emília”, “Bonde de São Januário”, “Mundo de Zinco”, “Acertei no Milhar”, “Balzaquiana”. Para se entender melhor Wilson Batista é preciso ir ao encontro de sua origem: acendedor de lampiões. Que com pedras batidas fez o fogo de sua existência. E ao encontro de personagens memoráveis, os percebeu lampiões. Disso, chamou depois samba.



Lenço no pescoço

Embora tenha ficado com a vilania na disputa, por posteriores respostas menos inspiradas, Wilson Batista foi primeiramente provocado por Noel Rosa, que questionou a pose de malandro do garoto de Campos instalado no Rio de Janeiro. “Lenço no pescoço”, composto em 1933, exibe o modo de vida que Wilson acalentava para si. Além disso, denuncia a dificuldade do trabalhador honesto para se sustentar, como justificativa de sua posição ‘à la malandragem’. Por fim, há a menção à forma como eram vistos os compositores populares na época, através da frase: “eu sou vadio porque tive inclinação, no meu tempo de criança tirava samba-canção.” A música foi lançada por Silvio Caldas, com sua peculiar bossa. Dois anos depois, Wilson e Noel Rosa compuseram juntos, o samba “Deixa de ser convencida”, que permaneceu inédita até o registro de Cristina Buarque, em 2000.



Inimigo do batente

Wilson não se acanhava em tirar um sarro de quem lhe cruzasse o caminho. Tinha por hábito se intitular “Cabo”, e requerer ajuda aos outros com o seguinte maneirismo: “Tem um dinheirinho aí, major?”. Esses trejeitos salientes eram utilizados com muito brio para inspirar seus sambas, num deles, “Inimigo do batente”, de 1939, em parceria com o amigo português Germano Augusto, Wilson Batista tripudia sem dó em cima daqueles que duvidavam de seus talentos artísticos, ironizando a fala da mulher: “Ele dá muita sorte, é moreno, é mesmo um atleta, mas tem um grande defeito, ele diz que é poeta”, como quem diz: vá arrumar trabalho de verdade. Ao que este responde: quem pode, pode, major.



A mulher que eu gosto

Filho de um funcionário da guarda municipal e sobrinho de um maestro de banda, a “Lira de Apolo”, na qual estreou tocando triângulo, Wilson Batista viveu avesso á legalidade, mas não se fez de rogado sobre a herança musical. As duas influências o perseguiram durante a vida, rebelde em relação à primeira, convicto com a segunda. Chegado dos irmãos Meira, malandros famosos da Lapa, Wilson sempre cultivou em seu círculo de amizades, subversivos da ordem vigente. Algumas prisões lhe rechearam o currículo, e foram acrescentadas às suas composições temáticas controversas para a época. Parceiro de vários sambistas, Wilson Batista compôs com Ciro de Sousa em 1941, “A mulher que eu gosto”, na qual reclama da deslealdade de um amigo.



Preconceito

Wilson Batista teve sua primeira música lançada por Araci Cortes, composta quando ele tinha 16 anos. Depois, seguiram-se gravações de nomes recorrentes da época: Luís Barbosa, Almirante e Francisco Alves, Castro Barbosa e Murilo Caldas juntos, no sucesso “Desacato”, denotando seu crescente prestígio. Em 1941, o “Cantor das Multidões”, Orlando Silva, lançou “Preconceito”, parceria com Marino Pinto, depois regravada por João Gilberto. Como na letra da música, em que um apaixonado rapaz pobre se vê instigado a conquistar o coração de uma moça rica, as fronteiras, sempre presentes, acenavam trégua quando se ouvia samba, (“meu samba vai, diz a ela, que o coração não tem cor”) responsável pela aproximação entre os grandes cantores do período e os compositores populares, relegados, via de regra, a um segundo plano. Além disso, estampa-se o preconceito racial marcante.



Emília

No afamado Café Nice, Wilson Batista conheceu Erasmo Silva, com quem arquitetou conjunto com as presenças de Lauro Paiva ao piano e Roberto Moreno na percussão. Com a desfeita, permaneceram somente os dois primeiros, que passaram a se intitular “Dupla Verde e Amarelo”, participando, inclusive, de espetáculos na Argentina, Porto Alegre e apresentações em São Paulo. Tempos depois, Wilson Batista escreveu com Haroldo Lobo música que versava sobre uma união desejosa de soberania. Um oportuno “café preparado” simbolizava a perfeição exaltada. Lançada por Vassourinha em 1942, foi regravada por Roberto Silva, com sucesso semelhante. Se encontrasse “Emília”, Wilson, certamente, cairia a seus pés de amor.



Meus vinte anos

O samba “Meus vinte anos” revela a amargura que a nostalgia pode abarcar. Composto em 1942, em parceria com Silvio Caldas, que o lançou, Wilson Batista se vale da rejeição das mulheres para constatar o triste passar do tempo. A isso, se assemelham valores medíocres, artificiais, propagados pela cultura do consumo estético. Sem notar que o tempo, grande juiz da vida, exulta o que lhe é preservado, e se vai com o resto. “Ai eu daria tudo, para poder voltar aos meus vinte anos”, entoam versos tristes.

Louco (Ela é seu mundo)

Era notória nos arredores da Lapa, a fama de conquistador de Wilson Batista. Apesar disso, ele fixou residência no amor, ao se casar com Marina Batista e ter com ela dois filhos. No samba de 1943, “Louco (Ela é seu mundo)”, em parceria com Henrique de Almeida, Wilson apresenta a loucura como a condutora oficial do sentimento menos previsível do homem. Com versos que descrevem a agonia do protagonista, o compositor apresenta uma bela letra, que acompanha os passos sem rumo. Lançada por Orlando Silva, ganhou regravação de Nelson Gonçalves, que revive com maestria todas as nuances da melodia, João Nogueira, Noite Ilustrada, Joyce, Cristina Buarque, Aracy de Almeida, João Gilberto, Elza Soares e diversos outros, reafirmando a qualidade de permanência da música.



Diagnóstico

No final da vida, Wilson Batista compôs em homenagem ao beliscador de cordas, Nelson Cavaquinho, um dos grandes nomes de Mangueira, à qual também dedicou muitas músicas. No samba de 1943, “Diagnóstico”, em parceria com Germano Augusto, Wilson esnoba a pompa da medicina, ambicionada em oferecer soluções totalizantes, e rememora os desavisados: “não há remédio pra curar uma saudade”. Se fosse feito um exame no coração de Wilson, estaria constatado: sambista incurável.

Mulato calado

“Mulato calado” estranhamente consta como sendo de autoria de Benjamim e Marina Batista, esposa de Wilson. Tendo sido inclusive registrada por seu verdadeiro autor, além de Aracy de Almeida e Adriana Calcanhotto, entre outros, o samba retrata uma história dramática que exemplifica a realidade dos morros cariocas, ainda na década de 40. Revivida por Clementina de Jesus 30 anos depois de seu lançamento, em 1977, apresenta integralmente personagens complexos do cotidiano brasileiro, acostumados a conviver com vida e morte na mesma sentença. “Vocês estão vendo aquele mulato calado, com o violão do lado, já matou um, já matou um...”



Chico Brito

As margens sempre interessaram a Wilson Batista, por ser ele próprio, parte integrante delas. Por isso em seus sambas retratam-se comportamentos dos ditos inadequados, de gente simples, posta de canto. “Chico Brito”, de 1949, em parceria com Afonso Teixeira, é o herói dos pequenos que se deteriora em razão de maus tratos. Afinal “se o homem nasceu bom, e não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou.” Não por acaso, é feita a primeira referência à maconha na música brasileira. Registrada por seu autor, foi lançada por Dircinha Batista, e regravada por Paulinho da Viola.

Mãe solteira

Wilson Batista nunca teve vergonha ou medo de abraçar os temas mais ásperos, ou seja, nunca mascarou a realidade. Talvez, por isso, a tragédia se insurja tão naturalmente e viva em suas músicas. O drama da Maria que ateia fogo às próprias vestes anuncia a hipocrisia de uma sociedade preconceituosa que se não capaz de uma violência física, pratica-a de maneira ainda assim massacrante. Composto em 1954 em parceria com Jorge de Castro, avisa no enunciado: “Hoje não tem ensaio, na escola de samba, o morro está triste, e o pandeiro calado.”



Nega Luzia

Há na música de Wilson Batista o fogo de seus personagens, reluzentes lampiões. Ele que em sua mocidade pretendeu tornar-se marceneiro enquanto compunha versos para os bandos dos quais participava. E que depois trabalhou como eletricista e ajudante de contra-regra no Teatro Recreio, para assim se aproximar das grandes estrelas. E foi por essas curvas, que fez parte da Orquestra de Romeu Malagueta, sendo crooner e tocando pandeiro. Embora só soubesse tocar caixinha de fósforos e demonstrasse dificuldade para escrever. Encontrou todo tipo de gente, do elegante Ataulfo Alves, ao pilantra Germano Augusto, bicheiro, conhecido como China, para quem vendeu muitos sambas. E foram esses sambas que cravaram o nome de Wilson Batista em lugar de destaque, flamenguista assumido, boêmio orgulhoso. Afinal como a “Nega Luzia” do samba de 1957, em parceria com Jorge de Castro, Wilson botou fogo no morro, na música brasileira, sem receber Nero, mas presenças até mais ilustres. Despediu-se em 1968, apenas ao parcial. Melodias e versos propagam-se infinitamente.

“Ganha-se pouco, mas é divertido” Wilson Batista

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