domingo, 31 de julho de 2011

A Hora do Coroa

Postado por Acir Antão on domingo, julho 31, 2011 with 7 comentários
No Sotaque de Adriana, texto de Raphael Vidigal




O mote é samba. Mas o sotaque é de Calcanhotto. Em álbum recheado de dedicatórias, Adriana não presta homenagem. Isso porque recusa a nostalgia para apresentar salutares desvios nos quais ambienta suas composições, com coloquial destreza para o inusitado.

Um dos que recebe menção honrosa na contracapa do disco é Jards Macalé, outro iconoclasta da canção brasileira. Aliado a ele vem Lupicínio Rodrigues, chamado tão intimamente de “lupi” que merece registro a maneira descompromissada com que Adriana se enverga do “micróbio do samba” dito pelo inventor da dor-de-cotovelo para dar nome à 12ª obra de sua carreira fonográfica (exceção à coletânea “Essencial” lançada em 2010).

Acompanhada em todas as faixas por Alberto Continentino no contrabaixo e Domenico Lancellotti na bateria e percussão (por vezes invertendo a ordem – ou seja – percussiva bateria e batida percussivista), Adriana começa sua saga rumo ao ritmo surpreendendo, como lhe é de seu fetiche nada usual em tempos demasiado óbvios.

Quem procura o tal micróbio do samba precisará de refinada lupa para encontrá-lo. Sim, pois os instrumentos presentes no álbum são tão inesperados quanto usar uma lupa para encontrar micróbio. E soam, além de criativos, agradáveis, dispensando a invencionice barata de grupos indie saídos em última fornada. A se notar o fato de que o som base é comandado por instrumentos elétricos tão rechaçados em ‘tempos idos’ (diria Cartola), sob a pretensão de defesa das raízes analógicas aqui instauradas pela miséria do povo.

Não se exclui o novo para abrigar o antigo. A riqueza com que Adriana desperta os olhares, ouvidos e gestos de sua matéria-prima é notável. Adriana lida poesia. Retira de cada sonoridade e palavra tudo o que podem oferecer em largueza e amplitude. Os sentidos deitam-se abertos ao deleite individual. Na primeira faixa, “eu vivo a sorrir” (assim grafadas minúsculas todas as palavras do disco), há exemplos que se cruzam soltos, envoltos pela atmosfera típica do samba (fadado fado; acaso caso). O que passará desapercebido por aqueles comprometidos com as verdades estáticas de uma vida mais maleável do que se lhes apresenta. Sem fazer pouco caso, Adriana e um de seus comparsas riem ao final.

“aquele plano para me esquecer”, brinca com contrastes, novamente: seu plano para me esquecer, esqueça, vaticina. E comporta a beleza rítmica do samba, sob os toques de um piano velejado aos dedos irreverentes de Calcanhotto. O clima revanchista e rancoroso, presente na terceira faixa, enclausura com propriedade a guitarra vertiginosa tocada por Adriana. “pode se remoer”, expõe no título do que se trata. E ainda remodela palavras, mantendo a sonoridade e o sentido primordial, como no caso de ajuizar/ajoelhar substituídas uma pela outra em versos, de resto, idênticos.

“mais perfumado”, oferecida à Thaís Gulin, enaltece o amor incondicional que se sujeita a provações inaceitáveis para muitos. O homem que trai é temática comum no mundo do samba, a mulher que mais do que desconfia, sabe, é mérito da lavra de Adriana. A música conta ainda com a “luxuosa”, como destacada pela própria cantora no encarte, participação de Davi Moraes e sua viola morna, que inaugura o sentir buliçoso do álbum.



“beijo sem”, já lançada com sucesso por Marisa Monte, e oferecida para ela mesma, põe à prova o canto narrativo e lento de Calcanhotto, como a sombrear palavras e requerer sons. É também faixa mais expansiva e menos interiorizada que as anteriores, abrilhantando o mosaico (como a obra de Leonílson – “Puros e duros – Ouro de artista – Ilusões”).

“já reparô?” permanece no tom da mulher que se coloca em primeiro plano, e ao invés de lamentar, se vangloria e provoca: a sua nova namorada, querida, pode ser linda e safa, (...) porte de gazela, olho de leoa, ser muito versada e hábil com a língua, do tipo que domina idiomas, mas ela não samba...”. E frases de conotação determinista: “o amor é o hiperquântico, e eu devo lhe fazer falta numa dada hora”. A ironia se estabelece, sem fazer concessões. Rodrigo Amarante pontilha generosamente solos de guitarra.

Outra canção com título questionador “vai saber?”, lançada e oferecida para Mart’nália, marca o ponto do disco em que o samba se esgueira com mais focinho tradicional. A se reparar o fato de Adriana tocar cuíca nessa faixa e caixa de fósforos na seguinte, “vem ver”. Numa, o rejeitado que sente raiva e ameaça o troco, noutra, o mesmo personagem, com a promessa de fazer de tudo para reconquistar o tal amor (perdido ou encontrado).

O chorístico cavaquinho de Davi Moraes, introduz a seara carnavalesca iniciada com “tão chic”, onde a sutil pronúncia de Adriana tem papel fundamental para a percepção da diferença em versos “si” e “se”. Nessa música, um exercício de cinismo com a eternidade, do “amor eterno até a quarta-feira”, sinalizando tom debochado com relação à festa. Na seguinte, “deixa, gueixa”, uma alegria exaltante em ritmo de bandeja de chá tocada por Adriana, em alusão ao objeto referido na letra. Com sagacidade, a faixa ganha coro de bloco e torna mais intimista a música, que vai do Ocidente ao Leme, dedicada para Hiromi.

No fim, “você disse não lembrar” é sensível composição bem aclimatada ao tempero tradicional do samba, enriquecida por toques de faca e prato de Moreno Veloso, que traça um caso de amor quase desfeito. “tá na minha hora” sinaliza o intento da autora dos versos, como síntese do trabalho feito: “despi as suas fantasias devagarinho, da sua onipotência tratei com jeitinho, e das chegadas de madrugada, no sapatinho, agora tá na minha hora...”.

E despede-se, erguendo a bandeira de sua Estação Primeira de Mangueira, inspiração para as cores que se destacam na belíssima capa do disco, via arte de Luiz Zerbini, Fernanda Villa-Lobos e Caroline Bittencourt. A “moça dos agudos de cristal”, que despertou o fascínio do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu em 1989, segue sua sina quebradiça de pérolas e diamantes. Com caminho livre para os rubis, em meio às pedras.



Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 05/07/2011.

7 comentários:

  1. Oi,
    Acyr, seu programa está arrasando neste primeiro dia do ano. Muita saúde e muita paz para vc continuar alegrando nossos dias, com os seus programas.
    Qualquer dia, vê se você toca a música "Vontade de chorar", com a Clara N unes, É linda!
    UM GRANDE ABRAÇO,

    GLÓRIA METZKER

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  2. Programa que não traz nada de proveito,todos os dias de nove às dez quando estou em casa desligo o radio para não ouvir a mesma coisa…EEEEEEEEIIIIIIIIIIgente uma copia pobre do apresentador eli correia de SP

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  3. Acir, Meu nome é Pedro Peixoto, moro em São João del Rei e todo domingo ouço seu programa! Adorei o programa desse domingo dia 01 de Julho. Pena que a Itatiaia não pega no meu rádio e só ouço por retransmissão. Abraços. peixoto@oi.com.br

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  4. Acir Antao, quero mandar um abraço e elogiar seu programa! Quero mandar um abraço tambem para o Lancaster e para o Liroca e convida-los para vir almoçar aqui em casa para comer carne moida com jurubeba.. ass Rosivaldo

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  5. Alcir sou ouvinte do seu programa A Hora do Coroa e, como coroa, aprecio as musicas antigas. Gostaria de pedir uma ajuda. Como se chama a música Você roubou toda alegria do meu viver/Me deixando na maior desilusão/Vivo triste procurando esquecer/Este amor que dominou meu coração... Acho que é do Anisio Silva década de 50. Não encontro em lugar nenhum.
    pedroparentester@gmail.com
    Pedro Parente - São João del-Rei.
    Obrigado - Um abraço.

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  6. Acir, linda a homenagem a Waldir Silva. Estou ouvindo o seu programa e assistindo na internet uma homenagem ao Waldir com vídeos dele com participação da cantora Maria José. Veja também: www.altoastralnews.blogspot.com

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  7. Caro radialista Acir Antão. Sou assíduo ouvinte de seus programas, especialmente o "Hora do Coroa" aos domingos. o qual nos brinda com bons interpretes e belas composições do passado, além de ser um manancial de história e cultura municipal. Estou sugerindo a um grupo de alunos que vai fazer um trabalho sobre o tema a sintonizar seu programa. Parabéns pelo belo trabalho. Espero ter o prazer de conhecê-lo pessoalmente. Um abraço. Pedro Paulo Pinto. Advogado - Ex-vice prefeito e ex-prefeito de Itaúna-MG.

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