Homenagem para Ataulfo Alves, texto de Raphael Vidigal
O Negrinho do Pastoreio carrega suas velas, símbolo do agradecimento daqueles que perderam algo. O Urubu malandro e suas pastoras levam o samba, modinhas mineiras aprendidas em casa, numa pequena Miraí que circulou o país pelos “tempos de criança”. Para um são celebradas missas, rezas, oferendas de flores. Para o outro, realizam-se rodas de samba, serestas, cantorias e serenatas. São homens-meninos da mais alta estirpe popular, um tem o peito nu, o outro traja ternos elegantes. Ambos têm a condição de lendas, com toda a justiça por tantos feitos espetaculares. Por causa disso, são eternos: Tanto o menino escravo, quanto o outro, filho de violeiro e versejador, mais conhecido por sua assinatura em melodias e letras, Ataulfo Alves.
Errei, erramos
Filho do Capitão Severino, assim chamado o conhecido violeiro, sanfoneiro e repentista da Zona Mata de Minas Gerais, pode-se dizer que Ataulfo Alves nasceu em berço de ouro da música popular brasileira. Porque foi através do DNA paterno que aprendeu a retrucar as trovas que virariam versos, e mais tarde, clássicos. O primeiro da safra do mineiro tímido que rumara da Fazenda Cachoeira para o Rio de Janeiro pode-se dizer que foi “Errei, erramos”, na interpretação do “Cantor das Multidões” Orlando Silva, depois de alguns sucessos nas vozes de Almirante, “Sexta-feira”, Carmen Miranda, “Tempo perdido”, Floriano Belham, com “Saudade do meu Barracão”, Silvio Caldas, a valsa “A você”, em parceria com Aldo Cabral, e Carlos Galhardo, na parceria com André Filho, “Quanta Tristeza”. O samba de 1938 foi lançado quando Ataulfo já detinha certo prestígio não somente aos olhos do descobridor e padrinho Bide, da dupla com Marçal, mas de grande parte do mundo do samba. Na canção, Ataulfo utiliza duas de suas temáticas favoritas, o amor e o sofrimento, que juntos recebem um julgamento filosófico com preceitos religiosos, onde o autor divide as culpas do sentimento que não vingou: “Esse princípio alguém jamais destrói. Errei, erramos.”
Ó! Seu Oscar
A morte do pai de Ataulfo Alves veio entristecê-lo quando ele era ainda um menino de dez anos. Por essa fatalidade, teve que mudar com a mãe e os seis irmãos para a cidade e ajudar no sustento da família. Dividindo o estudo com o trabalho. Empregou-se em vários: leiteiro, condutor de bois, carregador de malas na estação, menino de recados, marceneiro, engraxate e lavrador. Quando o Dr. Afrânio Pereira o convidou a ir com ele para a capital federal não teve dúvidas, mas o que encontrou na cidade, a princípio não foi nada do que esperava. Somente a princípio, porque depois de trabalhar no consultório entregando remédios e cuidando da limpeza, encontrou-se com sambistas da mais alta nobreza. Dentre eles, Wilson Baptista, malandro convicto com quem compôs “Ó! Seu Oscar”, grande vencedor do carnaval de 1940 que contava a história do moço, o tal Oscar, gíria para patife na época, que também encontrava em casa o que não queria: o matrimônio desfeito e a esposa curtindo a orgia. Foi o segundo sucesso de Ciro Monteiro.
Leva meu samba
Ataulfo Alves encontrou o amor no matrimônio no ano de 1928, quando se casou, aos 19 anos, já morando no Rio de Janeiro, com Judite. Com ela, permaneceu por toda a vida e teve cinco filhos, dois deles, Adeílton e Ataulpho Alves Júnior, com o DNA musical no sangue. Ataulfo ingressou pra valer no samba carioca quando se tornou diretor de harmonia da escola de samba “Fale Quem Quiser”, em referência à pioneira no ramo “Deixa Falar”, sem nunca perder as raízes mineiras. Foi por essa estrada pavimentada que ele chegou até o Mr. Evans, diretor americano da gravadora RCA Victor no Brasil, pelas mãos de Bide. Depois de êxitos como compositor, somente em 1941 estreou cantando suas músicas, a primeira delas, “Leva meu samba”, contou com o acompanhamento do ainda anônimo Jacob Bittencourt, posteriormente, do Bandolim, e já prenunciava o bom gosto de Ataulfo para escolher quem estivesse ao seu redor. Mais adiante, ele formaria um casamento de incrível sucesso, com as suas pastoras, que levariam seu samba e seu recado, para todos os amores, desfeitos e iniciados, regravado por Noite Ilustrada, Jorge Aragão, Sandra de Sá, e muitos outros.
O Bonde de São Januário
Ataulfo Alves se notabilizou também por exibir exímia classe e elegância irretocável, quebrando o paradigma do sambista relegado à malandragem. Constantemente de terno bem apanhado, era figura certa na coluna de Ibrahim Sued, jornalista que elegia os mais bem vestidos, e desfilava de Cadillac amarelo, último modelo, pelas ruas do Rio de Janeiro. Os trajes eram compatíveis aos modos de Ataulfo, solícito e agradável, muito bem querido por todos. No máximo desviava-se a pagar um dinheiro para que suas músicas tocassem mais no rádio, o famoso “jabá” ou “caitituagem”, tão comum na época quanto nos dias atuais. “O Bonde de São Januário” simboliza exatamente esse comportamento nada convencional para um sambista, com o adendo de ter sido proposto o tema pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), da ditadura militar, que julgava as canções muito subversivas em razão do conteúdo exaltante à boemia. Como resposta, Wilson Baptista e Ataulfo Alves escreveram uma bela composição que rompeu as barreiras do tempo e das determinações censoras, lançada por Ciro Monteiro, outro que extrapolou a margem do esgotável. A ditadura acabou. O bonde e seus personagens permaneceram. De quebra, ganhou o carnaval de 1941.
Ai, que saudades da Amélia
Mário Lago disse a vida inteira que Amélia não era mulher submissa, mas solidária, companheira, amiga nas horas difíceis. As feministas não o perdoaram por tais liberdades poéticas concedidas: “ás vezes passava fome ao meu lado, e achava bonito não ter o que comer”. A beleza do sofrimento retratada por Mário Lago, versos, e Ataulfo Alves, música, sobre a mulher idealizada, sinalizavam na realidade a dependência da atual esposa, segundo o próprio poeta: “Você não sabe o que é consciência, não vê que eu sou um pobre rapaz, você só pensa em luxo e riqueza, tudo que você vê você quer.” Lançada no carnaval de 1942, dividiu a preferência do público com “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo, e o prêmio teve que ser dividido. No entanto, “Amélia” penou para conquistar garantida assumidade na música brasileira. Foi recusada por todos os cantores as quais se ofereceu, até que o próprio Ataulfo Alves resolveu gravá-la, com a companhia de Jacob do Bandolim tocando a introdução. A trajetória da protagonista não foi das mais suaves, mas ao final, estava consagrada. E olha que Amélia existiu de verdade.
Atire a primeira pedra
Foi ao Café Nice que Mário Lago se dirigiu para comemorar com Ataulfo Alves o estouro de “Atire a primeira pedra”, samba de amor custoso escrito pelos dois compositores. O famoso reduto da boemia carioca abrigava a música como que por espontânea ligação religiosa. E eram versos religiosos que valorizavam o sucesso da composição em ritmo de penitência. Com a interpretação de Orlando Silva em 1944, foi lançada por Emilinha Borba no filme “Tristezas não pagam dívidas”. A música desfilou na boca do povo com tamanha empolgação no carnaval daquele ano que de acordo com Mário Lago foi a única vez que viu o amigo Ataulfo de “pilequinho”.
Errei, sim
O compositor Herivelto Martins, que vivia um atribulado fim de casamento com a cantora Dalva de Oliveira, com quem compôs o Trio de Ouro ao lado de Nilo Chagas, com manchetes nos jornais e escândalos sensacionalistas propagados pela imprensa, foi uma das únicas pessoas que conseguiu se desentender com o gentil Ataulfo Alves. Isso porque ele considerou os versos “Errei, sim, manchei o teu nome, mas foste tu mesmo o culpado. Deixavas-me em casa, me trocando pela orgia, faltando sempre com a sua companhia”, da música escrita pelo sambista e lançada em 1950 por Dalva de Oliveira uma ofensa e assunção de que a esposa o traía. A briga entre os dois se desfez em seguida. A canção ficou eternizada com seus versos confessionais e de contundência lamentadora.
Fim de comédia
O conjunto idealizado por Ataulfo Alves era formado inicialmente por Olga, Marilu e Alda, o trio vocal que recebeu o nome de “Pastoras”, por sugestão de Pedro Caetano, compositor de sucessos carnavalescos. Veio da festa profana a inspiração para o nome, num misto de atribuição religiosa. A denominação era como se chamava o coro feminino que acompanha o cantor principal, também conhecidas como cabrochas, muito presentes nas festas de Natal no nordeste brasileiro. E assim, Ataulfo foi feliz em sua escolha tanto quanto a interpretação de outra mulher gloriosa, a passional Dalva de Oliveira, que cantou de sua autoria em 1952, o samba doloroso “Fim de comédia”, lamentando ou celebrando, essa sim, com facadas agudas no peito como sua voz, o triste fim do casamento tortuoso com o compositor Herivelto Martins. Um marco revivido por vozes de firme intensidade, a exemplo de Elizeth Cardoso e Ângela Rô Rô: “Este amor quase tragédia, que me fez um grande mal. Felizmente essa comédia, vai chegando ao seu final.”
Pois é
Ataulfo Alves ingressou em diversas searas do ramo artístico e conquistou a admiração dos mais variados tipos. Fundou e tornou-se diretor da União Brasileira dos Compositores, que lutava pelos direitos autorais, criou a “Ataulfo Alves Edições, para editar suas próprias músicas e foi homenageado em quadros do pintor modernista brasileiro José Pancetti. O samba “Pois é”, lançado em 1955, gerou uma dupla repercussão na carreira de Ataulfo. Mirabeu Pinheiro, conhecido compositor, co-autor do sucesso carnavalesco “Turma do Funil”, andava descontente com as repreensões de Ataulfo por conta de direitos autorais, e respondeu a composição se passando pela morena fujona da letra, intitulado “A Morena Sou Eu”. O compositor mineiro, como poucas vezes se viu, não ficou quieto e resolveu ser desbocado, respondendo com outro samba, “Eu nada lhe perguntei”. O bate-boca durou mais uma música de Mirabeu, “Arria a Trouxa no chão”, sem satisfação de Ataulfo Alves, e os dois voltaram às pazes depois. Por outro lado, Pancetti se encantou com a composição, dedicando ao autor um quadro de mesmo nome, respondido à altura com outra preciosidade de seu repertório, “Lagoa Serena”, com J. Batista, que também terminou em pintura. Como ilustram os versos de “Pois é”, “a maldade dessa gente é uma arte...”. Que boa arte praticou Ataulfo.
Meus tempos de criança
O menino Ataulfo teve infância humilde, da qual soube recolher a riqueza dos pequenos gestos, as pequenas luzes que brilham sob o olhar inocente de uma criança. Essa essência, Ataulfo levou para a fase madura de sua vida, e se recordou com alegria e saudade, retratada no estilo dos versos presentes em toda sua obra realizada no Rio de Janeiro, mas com um pé fundo numa Minas interiorana, dolente, toada e rural. “Meus tempos de criança” é uma homenagem a todos que preservam os sons da matriz, “a professorinha que ensinou o bê-a-bá”, as travessuras e o primeiro amor, Mariazinha. “Eu era feliz e não sabia”. Esse arrependimento inevitavelmente tardio crava uma ponta de angústia na canção de Ataulfo Alves, composta em 1956, cobertor macio para todos aqueles de coração aguado.
Mulata Assanhada
Ary Barroso determinou em 1950 que o maior compositor popular brasileiro era seu conterrâneo mineiro, Ataulfo Alves. Seis anos depois, o prestigiado sambista lançou obra prima de sua autoria, outra delas, “Mulata Assanhada”. Lançada por Elizeth Cardoso, a canção corre no tempo esperto e sinuoso das curvas da mulata em questão, regravada mais tarde, sem demérito nenhum para a primeira gravação, pela personificante Elza Soares, tornado-se emblema de sua figura: “Ô mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente.” A incorreção política de Ataulfo aparece ao recorrer aos provocantes versos: “Ah mulata se eu pudesse, e se meu dinheiro desse, eu te dava sem pensar, essa terra, esse céu, esse mar. Ela finge que não sabe que tem feitiço no olhar. Ai meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão!”
Você passa, eu acho graça
Se em suas tumultuadas presenças no jornalismo e na política, Imperial podia ser apontado por alguns como picareta, apresentando doses nada convencionais de escracho, no trato com a musicalidade ele cultivava soberba engenhosidade. Foi após ficar conhecido como grande referencial do rock solto da Jovem Guarda e da Pilantragem que ele se aventurou pelo prolífico campo do samba em homenagem a um desamor. Aparceirando-se com ninguém menos que o gentleman das palavras e melodias Ataulfo Alves ele se tornou co-autor da revigorante “Você passa, eu acho graça”, que em 1968 mandou um recado à flor que perdeu o encanto: “E agora, você passa, eu acho graça. Nessa vida tudo passa, e você também passou. Entre as flores, você era a mais bela. Minha rosa amarela, que desfolhou, perdeu a cor”.
Laranja madura
Os passos mineiros de Ataulfo Alves ganharam o mundo pela primeira vez em 1961, a convite do parceiro de Luiz Gonzaga, o doutor do baião Humberto Teixeira, como parte de uma caravana de divulgação da música brasileira na Europa. Cinco anos mais tarde, rumou para Senegal, e em Dacar representou o país no I Festival de Arte Negra. Também em sua terra, Ataulfo era louvado, virando nome de rua. Ao todo, ele deixou cerca de 400 músicas gravadas, dentre elas, “Laranja madura”, de 1967, samba que desconfia da bondade alheia ao fazer comparação com uma “laranja madura na beira de estrada tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”, antigo ditado do povo recolhido por Ataulfo Alves. Desconfiança mineira que já não existia à essa altura, nem em praticamente todo seu percurso artístico, com o cidadão informalmente honorário de Miraí.
Na cadência do samba
O cantor e compositor Ataulfo Alves era também violonista, cavaquinista e bandolinista, ou seja, um músico de primeira linha. Por tais qualidades inquestionáveis é que ficou em evidência até o fim de sua vida, mesmo com o advento da bossa nova e da jovem guarda em detrimento de seu particular samba, assim chamado pela intimidade que demonstrava nesse trato. Em 1962, compôs uma música com Paulo Gesta, interpretada por Elizeth Cardoso, de nome idêntico à outra que ficaria conhecida como fundo musical do futebol, assim chamada “Na cadência do samba”, em menção à despedida que ele desejava para si. Ficou marcada na memória da música popular brasileira a morosidade arrastada da melodia que encanta os versos alentadores: “Sei que vou morrer, não sei o dia. Levarei saudades da Maria. Sei que vou morrer não sei a hora. Levarei saudades da Aurora. Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita de um samba.” A cadência que seu autor deixou para a posteridade, como legado in contest de sua obra monumental, exposta nas melhores confraternizações e festejos musicais desse país chamado Brasil, rico de lendas para ninguém botar defeito.
“Leva meu samba, meu mensageiro, esse recado, para o meu amor primeiro” Ataulfo Alves
O Negrinho do Pastoreio carrega suas velas, símbolo do agradecimento daqueles que perderam algo. O Urubu malandro e suas pastoras levam o samba, modinhas mineiras aprendidas em casa, numa pequena Miraí que circulou o país pelos “tempos de criança”. Para um são celebradas missas, rezas, oferendas de flores. Para o outro, realizam-se rodas de samba, serestas, cantorias e serenatas. São homens-meninos da mais alta estirpe popular, um tem o peito nu, o outro traja ternos elegantes. Ambos têm a condição de lendas, com toda a justiça por tantos feitos espetaculares. Por causa disso, são eternos: Tanto o menino escravo, quanto o outro, filho de violeiro e versejador, mais conhecido por sua assinatura em melodias e letras, Ataulfo Alves.
Errei, erramos
Filho do Capitão Severino, assim chamado o conhecido violeiro, sanfoneiro e repentista da Zona Mata de Minas Gerais, pode-se dizer que Ataulfo Alves nasceu em berço de ouro da música popular brasileira. Porque foi através do DNA paterno que aprendeu a retrucar as trovas que virariam versos, e mais tarde, clássicos. O primeiro da safra do mineiro tímido que rumara da Fazenda Cachoeira para o Rio de Janeiro pode-se dizer que foi “Errei, erramos”, na interpretação do “Cantor das Multidões” Orlando Silva, depois de alguns sucessos nas vozes de Almirante, “Sexta-feira”, Carmen Miranda, “Tempo perdido”, Floriano Belham, com “Saudade do meu Barracão”, Silvio Caldas, a valsa “A você”, em parceria com Aldo Cabral, e Carlos Galhardo, na parceria com André Filho, “Quanta Tristeza”. O samba de 1938 foi lançado quando Ataulfo já detinha certo prestígio não somente aos olhos do descobridor e padrinho Bide, da dupla com Marçal, mas de grande parte do mundo do samba. Na canção, Ataulfo utiliza duas de suas temáticas favoritas, o amor e o sofrimento, que juntos recebem um julgamento filosófico com preceitos religiosos, onde o autor divide as culpas do sentimento que não vingou: “Esse princípio alguém jamais destrói. Errei, erramos.”
Ó! Seu Oscar
A morte do pai de Ataulfo Alves veio entristecê-lo quando ele era ainda um menino de dez anos. Por essa fatalidade, teve que mudar com a mãe e os seis irmãos para a cidade e ajudar no sustento da família. Dividindo o estudo com o trabalho. Empregou-se em vários: leiteiro, condutor de bois, carregador de malas na estação, menino de recados, marceneiro, engraxate e lavrador. Quando o Dr. Afrânio Pereira o convidou a ir com ele para a capital federal não teve dúvidas, mas o que encontrou na cidade, a princípio não foi nada do que esperava. Somente a princípio, porque depois de trabalhar no consultório entregando remédios e cuidando da limpeza, encontrou-se com sambistas da mais alta nobreza. Dentre eles, Wilson Baptista, malandro convicto com quem compôs “Ó! Seu Oscar”, grande vencedor do carnaval de 1940 que contava a história do moço, o tal Oscar, gíria para patife na época, que também encontrava em casa o que não queria: o matrimônio desfeito e a esposa curtindo a orgia. Foi o segundo sucesso de Ciro Monteiro.
Leva meu samba
Ataulfo Alves encontrou o amor no matrimônio no ano de 1928, quando se casou, aos 19 anos, já morando no Rio de Janeiro, com Judite. Com ela, permaneceu por toda a vida e teve cinco filhos, dois deles, Adeílton e Ataulpho Alves Júnior, com o DNA musical no sangue. Ataulfo ingressou pra valer no samba carioca quando se tornou diretor de harmonia da escola de samba “Fale Quem Quiser”, em referência à pioneira no ramo “Deixa Falar”, sem nunca perder as raízes mineiras. Foi por essa estrada pavimentada que ele chegou até o Mr. Evans, diretor americano da gravadora RCA Victor no Brasil, pelas mãos de Bide. Depois de êxitos como compositor, somente em 1941 estreou cantando suas músicas, a primeira delas, “Leva meu samba”, contou com o acompanhamento do ainda anônimo Jacob Bittencourt, posteriormente, do Bandolim, e já prenunciava o bom gosto de Ataulfo para escolher quem estivesse ao seu redor. Mais adiante, ele formaria um casamento de incrível sucesso, com as suas pastoras, que levariam seu samba e seu recado, para todos os amores, desfeitos e iniciados, regravado por Noite Ilustrada, Jorge Aragão, Sandra de Sá, e muitos outros.
O Bonde de São Januário
Ataulfo Alves se notabilizou também por exibir exímia classe e elegância irretocável, quebrando o paradigma do sambista relegado à malandragem. Constantemente de terno bem apanhado, era figura certa na coluna de Ibrahim Sued, jornalista que elegia os mais bem vestidos, e desfilava de Cadillac amarelo, último modelo, pelas ruas do Rio de Janeiro. Os trajes eram compatíveis aos modos de Ataulfo, solícito e agradável, muito bem querido por todos. No máximo desviava-se a pagar um dinheiro para que suas músicas tocassem mais no rádio, o famoso “jabá” ou “caitituagem”, tão comum na época quanto nos dias atuais. “O Bonde de São Januário” simboliza exatamente esse comportamento nada convencional para um sambista, com o adendo de ter sido proposto o tema pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), da ditadura militar, que julgava as canções muito subversivas em razão do conteúdo exaltante à boemia. Como resposta, Wilson Baptista e Ataulfo Alves escreveram uma bela composição que rompeu as barreiras do tempo e das determinações censoras, lançada por Ciro Monteiro, outro que extrapolou a margem do esgotável. A ditadura acabou. O bonde e seus personagens permaneceram. De quebra, ganhou o carnaval de 1941.
Ai, que saudades da Amélia
Mário Lago disse a vida inteira que Amélia não era mulher submissa, mas solidária, companheira, amiga nas horas difíceis. As feministas não o perdoaram por tais liberdades poéticas concedidas: “ás vezes passava fome ao meu lado, e achava bonito não ter o que comer”. A beleza do sofrimento retratada por Mário Lago, versos, e Ataulfo Alves, música, sobre a mulher idealizada, sinalizavam na realidade a dependência da atual esposa, segundo o próprio poeta: “Você não sabe o que é consciência, não vê que eu sou um pobre rapaz, você só pensa em luxo e riqueza, tudo que você vê você quer.” Lançada no carnaval de 1942, dividiu a preferência do público com “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo, e o prêmio teve que ser dividido. No entanto, “Amélia” penou para conquistar garantida assumidade na música brasileira. Foi recusada por todos os cantores as quais se ofereceu, até que o próprio Ataulfo Alves resolveu gravá-la, com a companhia de Jacob do Bandolim tocando a introdução. A trajetória da protagonista não foi das mais suaves, mas ao final, estava consagrada. E olha que Amélia existiu de verdade.
Atire a primeira pedra
Foi ao Café Nice que Mário Lago se dirigiu para comemorar com Ataulfo Alves o estouro de “Atire a primeira pedra”, samba de amor custoso escrito pelos dois compositores. O famoso reduto da boemia carioca abrigava a música como que por espontânea ligação religiosa. E eram versos religiosos que valorizavam o sucesso da composição em ritmo de penitência. Com a interpretação de Orlando Silva em 1944, foi lançada por Emilinha Borba no filme “Tristezas não pagam dívidas”. A música desfilou na boca do povo com tamanha empolgação no carnaval daquele ano que de acordo com Mário Lago foi a única vez que viu o amigo Ataulfo de “pilequinho”.
Errei, sim
O compositor Herivelto Martins, que vivia um atribulado fim de casamento com a cantora Dalva de Oliveira, com quem compôs o Trio de Ouro ao lado de Nilo Chagas, com manchetes nos jornais e escândalos sensacionalistas propagados pela imprensa, foi uma das únicas pessoas que conseguiu se desentender com o gentil Ataulfo Alves. Isso porque ele considerou os versos “Errei, sim, manchei o teu nome, mas foste tu mesmo o culpado. Deixavas-me em casa, me trocando pela orgia, faltando sempre com a sua companhia”, da música escrita pelo sambista e lançada em 1950 por Dalva de Oliveira uma ofensa e assunção de que a esposa o traía. A briga entre os dois se desfez em seguida. A canção ficou eternizada com seus versos confessionais e de contundência lamentadora.
Fim de comédia
O conjunto idealizado por Ataulfo Alves era formado inicialmente por Olga, Marilu e Alda, o trio vocal que recebeu o nome de “Pastoras”, por sugestão de Pedro Caetano, compositor de sucessos carnavalescos. Veio da festa profana a inspiração para o nome, num misto de atribuição religiosa. A denominação era como se chamava o coro feminino que acompanha o cantor principal, também conhecidas como cabrochas, muito presentes nas festas de Natal no nordeste brasileiro. E assim, Ataulfo foi feliz em sua escolha tanto quanto a interpretação de outra mulher gloriosa, a passional Dalva de Oliveira, que cantou de sua autoria em 1952, o samba doloroso “Fim de comédia”, lamentando ou celebrando, essa sim, com facadas agudas no peito como sua voz, o triste fim do casamento tortuoso com o compositor Herivelto Martins. Um marco revivido por vozes de firme intensidade, a exemplo de Elizeth Cardoso e Ângela Rô Rô: “Este amor quase tragédia, que me fez um grande mal. Felizmente essa comédia, vai chegando ao seu final.”
Pois é
Ataulfo Alves ingressou em diversas searas do ramo artístico e conquistou a admiração dos mais variados tipos. Fundou e tornou-se diretor da União Brasileira dos Compositores, que lutava pelos direitos autorais, criou a “Ataulfo Alves Edições, para editar suas próprias músicas e foi homenageado em quadros do pintor modernista brasileiro José Pancetti. O samba “Pois é”, lançado em 1955, gerou uma dupla repercussão na carreira de Ataulfo. Mirabeu Pinheiro, conhecido compositor, co-autor do sucesso carnavalesco “Turma do Funil”, andava descontente com as repreensões de Ataulfo por conta de direitos autorais, e respondeu a composição se passando pela morena fujona da letra, intitulado “A Morena Sou Eu”. O compositor mineiro, como poucas vezes se viu, não ficou quieto e resolveu ser desbocado, respondendo com outro samba, “Eu nada lhe perguntei”. O bate-boca durou mais uma música de Mirabeu, “Arria a Trouxa no chão”, sem satisfação de Ataulfo Alves, e os dois voltaram às pazes depois. Por outro lado, Pancetti se encantou com a composição, dedicando ao autor um quadro de mesmo nome, respondido à altura com outra preciosidade de seu repertório, “Lagoa Serena”, com J. Batista, que também terminou em pintura. Como ilustram os versos de “Pois é”, “a maldade dessa gente é uma arte...”. Que boa arte praticou Ataulfo.
Meus tempos de criança
O menino Ataulfo teve infância humilde, da qual soube recolher a riqueza dos pequenos gestos, as pequenas luzes que brilham sob o olhar inocente de uma criança. Essa essência, Ataulfo levou para a fase madura de sua vida, e se recordou com alegria e saudade, retratada no estilo dos versos presentes em toda sua obra realizada no Rio de Janeiro, mas com um pé fundo numa Minas interiorana, dolente, toada e rural. “Meus tempos de criança” é uma homenagem a todos que preservam os sons da matriz, “a professorinha que ensinou o bê-a-bá”, as travessuras e o primeiro amor, Mariazinha. “Eu era feliz e não sabia”. Esse arrependimento inevitavelmente tardio crava uma ponta de angústia na canção de Ataulfo Alves, composta em 1956, cobertor macio para todos aqueles de coração aguado.
Mulata Assanhada
Ary Barroso determinou em 1950 que o maior compositor popular brasileiro era seu conterrâneo mineiro, Ataulfo Alves. Seis anos depois, o prestigiado sambista lançou obra prima de sua autoria, outra delas, “Mulata Assanhada”. Lançada por Elizeth Cardoso, a canção corre no tempo esperto e sinuoso das curvas da mulata em questão, regravada mais tarde, sem demérito nenhum para a primeira gravação, pela personificante Elza Soares, tornado-se emblema de sua figura: “Ô mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente.” A incorreção política de Ataulfo aparece ao recorrer aos provocantes versos: “Ah mulata se eu pudesse, e se meu dinheiro desse, eu te dava sem pensar, essa terra, esse céu, esse mar. Ela finge que não sabe que tem feitiço no olhar. Ai meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão!”
Você passa, eu acho graça
Se em suas tumultuadas presenças no jornalismo e na política, Imperial podia ser apontado por alguns como picareta, apresentando doses nada convencionais de escracho, no trato com a musicalidade ele cultivava soberba engenhosidade. Foi após ficar conhecido como grande referencial do rock solto da Jovem Guarda e da Pilantragem que ele se aventurou pelo prolífico campo do samba em homenagem a um desamor. Aparceirando-se com ninguém menos que o gentleman das palavras e melodias Ataulfo Alves ele se tornou co-autor da revigorante “Você passa, eu acho graça”, que em 1968 mandou um recado à flor que perdeu o encanto: “E agora, você passa, eu acho graça. Nessa vida tudo passa, e você também passou. Entre as flores, você era a mais bela. Minha rosa amarela, que desfolhou, perdeu a cor”.
Laranja madura
Os passos mineiros de Ataulfo Alves ganharam o mundo pela primeira vez em 1961, a convite do parceiro de Luiz Gonzaga, o doutor do baião Humberto Teixeira, como parte de uma caravana de divulgação da música brasileira na Europa. Cinco anos mais tarde, rumou para Senegal, e em Dacar representou o país no I Festival de Arte Negra. Também em sua terra, Ataulfo era louvado, virando nome de rua. Ao todo, ele deixou cerca de 400 músicas gravadas, dentre elas, “Laranja madura”, de 1967, samba que desconfia da bondade alheia ao fazer comparação com uma “laranja madura na beira de estrada tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”, antigo ditado do povo recolhido por Ataulfo Alves. Desconfiança mineira que já não existia à essa altura, nem em praticamente todo seu percurso artístico, com o cidadão informalmente honorário de Miraí.
Na cadência do samba
O cantor e compositor Ataulfo Alves era também violonista, cavaquinista e bandolinista, ou seja, um músico de primeira linha. Por tais qualidades inquestionáveis é que ficou em evidência até o fim de sua vida, mesmo com o advento da bossa nova e da jovem guarda em detrimento de seu particular samba, assim chamado pela intimidade que demonstrava nesse trato. Em 1962, compôs uma música com Paulo Gesta, interpretada por Elizeth Cardoso, de nome idêntico à outra que ficaria conhecida como fundo musical do futebol, assim chamada “Na cadência do samba”, em menção à despedida que ele desejava para si. Ficou marcada na memória da música popular brasileira a morosidade arrastada da melodia que encanta os versos alentadores: “Sei que vou morrer, não sei o dia. Levarei saudades da Maria. Sei que vou morrer não sei a hora. Levarei saudades da Aurora. Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita de um samba.” A cadência que seu autor deixou para a posteridade, como legado in contest de sua obra monumental, exposta nas melhores confraternizações e festejos musicais desse país chamado Brasil, rico de lendas para ninguém botar defeito.
“Leva meu samba, meu mensageiro, esse recado, para o meu amor primeiro” Ataulfo Alves
"coração não é tão simples quanto pensa, nele cabe o que não cabe na despensa"
ResponderExcluirmauricioopereira.blogspot