domingo, 28 de novembro de 2010

A Hora do Coroa

Postado por Acir Antão on domingo, novembro 28, 2010 with Faça um comentário
Homenagem que fizemos à Mário Lago, com textos de Raphael Vidigal




Não à toa chamam Mário Lago poeta. Além da função literária, ele desempenhava os serviços de ator, compositor, radialista e teatrólogo. Tudo com poesia. Sem mencionar que por desvios dessa vida que a gente não imagina, formou-se em advocacia, embora procurasse algumas vezes, esconder o diploma adquirido. Fonte de suas escritas eram as mulheres, Auroras e Amélias. E também o fracasso, condição existencial do homem. Por fim, nada além, Mário Lago somente poeta.




Ai, que saudades da Amélia

Mário Lago disse a vida inteira que Amélia não era mulher submissa, mas solidária, companheira, amiga nas horas difíceis. As feministas não o perdoaram por tais liberdades poéticas concedidas: “ás vezes passava fome ao meu lado, e achava bonito não ter o que comer”. A beleza do sofrimento retratada por Mário Lago, versos, e Ataulfo Alves, música, sobre a mulher idealizada, sinalizavam na realidade a dependência da atual esposa, segundo o próprio poeta: “Você não sabe o que é consciência, não vê que eu sou um pobre rapaz, você só pensa em luxo e riqueza, tudo que você vê você quer.” Lançada no carnaval de 1942, dividiu a preferência do público com “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo, e o prêmio teve que ser dividido. No entanto, “Amélia” penou para conquistar garantida assumidade na música brasileira. Foi recusada por todos os cantores as quais se ofereceu, até que o próprio Ataulfo Alves resolveu gravá-la, com a companhia de Jacob do Bandolim tocando a introdução. A trajetória da protagonista não foi das mais suaves, mas ao final, estava consagrada. E olha que Amélia existiu de verdade.



Nada além

Custódio Mesquita e Mário Lago resumiram uma relação sublime na música brasileira. A alta costura dos versos do poeta associada ao esmero da melodia do compositor especificaram o amor em sua face menos dolorosa e possivelmente mais assumida, a doce ilusão. Docemente, Orlando Silva gravou o fox “Nada além”, em 1938, como era de sua categoria, acrescentando murmúrios chorosos ao final da canção. Nada mais bonito: “Nada além, nada além de uma ilusão, chega bem, que é demais para o meu coração, acreditando em tudo que o amor mentindo sempre diz, eu vou vivendo assim feliz, na ilusão de ser feliz.”



Aurora

Antes de Amélia, houve na vida de Mário Lago uma outra mulher. Sorte que ela não fosse sincera, pois inspirou-lhe belas alfinetadas na sabida moça. Carmen Miranda alçou ao sucesso as qualidadades de Aurora, que foi pela primeira vez cantada pela dupla Joel e Gaúcho. No carnaval de 1941, a marchinha de Roberto Roberti e Mário Lago alcançou glórias em terras brasileiras, inglesas e americanas, tornando-se inclusive, tema de filme estrangeiro.

Atire a primeira pedra

Foi ao Café Nice que Mário Lago se dirigiu para comemorar com Ataulfo Alves o estouro de “Atire a primeira pedra”, samba de amor custoso escrito pelos dois compositores. O famoso reduto da boêmia carioca abrigava a música como que por espontânea ligação religiosa. E eram versos religiosos que valorizavam o sucesso da composição em ritmo de penitência. Com a interpretação de Orlando Silva em 1944, foi lançada por Emilinha Borba no filme “Tristezas não pagam dívidas”. A música desfilou na boca do povo com tamanha empolgação no carnaval daquele ano que de acordo com Mário Lago foi a única vez que viu o amigo Ataulfo de “pilequinho”.



Fracasso

Herdada a música de seus avós e de seu pai, Mário Lago foi instruído pela mãe a seguir a carreira de Vinicius de Moraes. Não que ele fosse poeta, compositor, artista, “profissões de fome”, segundo o pai que as vira de perto. Queriam que fosse diplomata e usasse casaca, perfeita para seu porte alto e magro. Mas Mário Lago contrariou a todos e tornou-se aquilo que não queriam. Com exímia sabedoria poetizou o tempo, galanteou as artes e foi músico do amor. “Fracasso”, de 1946, é o samba-canção contrário à constância de sua trajetória, dedicada a aplausos por suas performances emocionais e honestas, ricas em despertar sinceros sentimentos. Os retumbantes versos finais da composição exclusiva de Mário Lago, “por te querer tanto bem e me fazer tanto mal”, emergiram das vozes graves de Francisco Alves e Nelson Gonçalves para perpetuar, mais uma vez, a essência de um homem que soube recolher da simplicidade o sumo de sua poesia.

“Fiz um acordo com o tempo, nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra” Mário Lago




Homenagem que fizemos à Marlene, com textos de Raphael Vidigal




O auditório está de pé para apreciar a disputa entre duas vozes agudas que se elevam com categoria. Ao microfone da rádio elas se apresentam com a elegância de quem sabe ser majestade, e as bandeiras flutuantes na platéia alardeiam seus nomes, suspensas por exasperados fã-clubes que não se contentam em elegê-las somente rainhas das canções, promovendo uma histórica rivalidade. No topo mais alto da música, que és o lugar de direito, lá vem Marlene, pinta sob a boca, nariz em riste, lata d’água na cabeça. Lá vem Emilinha, com a mesma pinta, bem aprumada, despertando reações escandalosas. Nossas Rainhas Soberanas, exibem charme, e som de primeiríssima nobreza.



Lata d’água

“É a maior!” gritam os enunciados e admiradores da cantora que se apresenta no programa de Manoel Barcellos. E de fato, ela faz jus à exaltação. Marlene veio ao mundo Vitória e pisou na passarela de notas e versos já com a inspiração da atriz alemã que lhe emprestou o nome artístico. Caminhou sempre com nitidez de passos e o espetáculo que concede desde o início tornou-se sinônimo de autenticidade. Marlene tem no cantar uma marca que é só sua, própria, e inalcançável. E é com essa força da personalidade que ela dá vida à Maria do morro de Luis Antônio e Jota Júnior, no carnaval de 1952 que está gravado na batalha diária, sob o clamor que anuncia Marlene:

“Lata d’água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro não se cansa
Pela mão leva a criança, lá vai Maria”




Qui nem jiló

Marlene teve carreira internacional, sendo levada, em 1959, a se apresentar no Teatro Olympia, em Paris, pela diva francesa Edith Piaf. Mas foi em solo brasileiro que ela consolidou suas maiores conquistas, atuando em teatros, musicais e shows históricos, como o invejável “Carnavália”, protagonizado ao lado de Blecaute e Nuno Roland e planejado pela cronista Eneida. Na opinião de muitos, o maior espetáculo de carnaval que o Rio de Janeiro teve a honra de receber. E nessa brasilidade cativa que exerce, Marlene apreciou canções românticas e polcas com a mesma integridade que utilizou em sambas tornados imortais. Foi responsável, inclusive, por realizar uma das primeiras gravações da obra de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, com a companhia do grupo vocal Os Cariocas, o baião “Qui nem jiló, em 1949:

“Se a gente lembra só por lembrar
O amor que a gente um dia perdeu
Saudade inté que assim é bom
Pro cabra se convencer, que é feliz sem saber”




Mora na filosofia

A Favorita da Aeronáutica mantinha uma disputa externa com a Favorita da Marinha. As brigas, levadas frequentemente à cena pela ação dos fã-clubes, frutificaram em belas gravações em dupla de Marlene e Emilinha Borba. As duas rimaram guerra e paz como Monsueto e Arnaldo Passos rimavam amor e dor na moradia que construíram na filosofia. O samba de 1954 possui uma das mais bem acabadas letras da canção popular brasileira, sinalizando a deixa perfeita para uma intromissão oportuna do homem que grita em meio aos batuques: “Tá na cara!” Ao que Marlene antecede os versos: “Se seu corpo ficasse marcado, por lábios e mãos carinhosas, eu saberia, a quantos você pertencia, não vou me preocupar em ver, seu caso não é de ver pra crer.” Diamante lapidado que se abrilhanta na voz de Marlene, artista completa que oferece seu talento estelar por onde canta.

“Eu vou lhe dar a decisão
Botei na balança, você não pesou
Botei na peneira, você não passou
Mora, na filosofia, pra quê rimar
Amor e dor?”




Homenagem que fizemos à Carlos Imperial, com textos de Raphael Vidigal




O pilantra que se auto-glorificava, Carlos Imperial, era mestre para advogar elogios em causa própria. Seus pupilos foram sempre dignos de receberem “Dez, nota dez!”, bordão que ele inventou para o carnaval carioca e que espalhava aos borbotões, infiltrando-se nos espaços mais obscuros com as ferramentas mais suspeitas que um rei pode utilizar. Seu Império subiu à superfície na base de muita esperteza, pilantragem e tino para a coisa, como ele próprio sugeria. O que ficou para a posterioridade? A imagem mal afamada de um sujeito querido por suas composições cheias de suingue e ritmo balanceado e contestado pela exibição barata de sua cafajestagem.



Mamãe passou açúcar em mim

Sem vergonha de utilizar métodos artificiais para promover seus objetivos, o Gordo, apelido de Carlos Imperial por sua postura corpulenta e despachada no comando de seus programas de TV ou no cinema, teve fundamental importância na criação do chamado rock jovem na música brasileira, que mais tarde ele rebatizaria de “pilantragem”. Depois de tentar lançar sem sucesso o ícone da Jovem Guarda que viria a ser Roberto Carlos e de participar da produção do primeiro álbum de Elis Regina, posta para rivalizar com Celly Campelo, Imperial viu no mulato Wilson Simonal sua mina de ouro descoberta. Foi pensando nele que o apresentador, cantor e agitador cultural mais aplaudido e vaiado nos anos 60, compôs a convencida “Mamãe passou açúcar em mim”, em 1966:

“Eu era neném, não tinha talco
Mamãe passou açúcar em mim
Mamãe passou açúcar em mim”




Você passa, eu acho graça

Se em suas tumultuadas presenças no jornalismo e na política, Imperial podia ser apontado por alguns como picareta, apresentando doses nada convencionais de escracho, no trato com a musicalidade ele cultivava exímia classe. Foi após ficar conhecido como grande referencial do rock solto da Jovem Guarda e da Pilantragem que ele se aventurou pelo prolífico campo do samba em homenagem a um desamor. Aparceirando-se com ninguém menos que o gentleman das palavras e melodias Ataulfo Alves ele se tornou co-autor da revigorante “Você passa, eu acho graça”, que em 1968 mandou um recado à flor que perdeu o encanto:

“E agora, você passa, eu acho graça
Nessa vida tudo passa, e você também passou
Entre as flores, você era a mais bela
Minha rosa amarela, que desfolhou, perdeu a cor”




O Bom

A voz rouca e encorpada de Eduardo Araújo já ecoava pelos campos da fazenda de seu pai em Joaíma, no interior de Minas Gerais, desde muito cedo, e logo o fez perceber que a carreira de veterinário talvez não fosse a melhor opção para sua vida. Partiu então em busca de outras terras e resolveu cavalgar pelas notas e acordes dançantes de um ritmo novo que surgia com força e ousadia no cenário musical brasileiro: a Jovem Guarda. Liderada por nomes como Roberto Carlos e Erasmo Carlos e tendo ainda em seu elenco as presenças marcantes de Renato e seus Blue Caps, Ronnie Von, The Fevers, Jerry Adriani, além das musas Wanderléa, Rosemary e Sylvinha Araújo, dentre outros, a Jovem Guarda logo emplacaria nas paradas de sucesso e faria com que um desesperançado Eduardo Araújo deixasse novamente a fazenda de seu pai e voltasse ao Rio de Janeiro, atrás do sonho de cavalgar na crista da onda daquele movimento. O que aconteceu efetivamente no ano de 1967 quando estourou com o seu primeiro sucesso, a canção “O bom”, de Carlos Imperial, que traduzia o comportamento e a postura artística daquela nova geração de músicos.

“Ele é o bom, é o bom, é o bom
“Ele é o bom, é o bom, é o bom
Ah!, Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear
botinha sem meia e só na areia eu sei trabalhar”


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