Homenagem para Dorival Caymmi, texto de Raphael Vidigal
Rede balança a pena do pintor-poeta. Mãos do barro esculpidas n’água. Pedras de areia brincam pele bronzeada. Brincos e badulaques. O mar espreguiça em peixes verdes verdades vidas levadas trazidas pela correnteza, na harmonia Dorival Caymmi.
Marina
“Marina” conta a história do homem fragilizado diante da força sedutora da sua mulher. Inspirada num mau trato do filho pequeno de Dorival, o que viria a se tornar o cantor e compositor Dori Caymmi, então com três anos idade, que repetia ‘ to de mal com você’, quando contrariado. E foi nesse pequeno gesto infantil que Dorival percebeu que o homem contrariado tende a abolir as questões da maturidade, razão pela qual os romances são sempre difíceis, conduzidos pela volúvel emoção. Fora isso, a canção lançada em 1947 por quatro cantores diferentes, (Dick Farney, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, e o próprio autor), rompeu com uma lenda da indústria fonográfica e marcou um costume feminino da época que veio a se consolidar nas décadas seguintes: o de se maquiarem. “Marina morena, Marina, você se pintou...”. O veredito de Dorival Caymmi contra esse tipo de artifício revela sua profunda ligação com a natureza, com as coisas em seu estado natural e integrado: “Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu...”
O Samba da Minha Terra
“O Samba da Minha Terra”, é a declaração de amor de Dorival Caymmi às suas raízes musicais e terrenas. Confundem-se Bahia e samba na trajetória desse fruto da boa terra que chegou ainda moço ao Rio de Janeiro, e no mesmo ano da composição, em 1940, jurou novo amor eterno: à cantora Stela Maris, sua companheira durante toda vida. O verso em forma de ditado popularizou-se tal qual algo que se prega à nossa personalidade e que se colhe no berço, nos primeiros passos dados, em terra firme ou alto mar: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça, ou doente do pé!”. Foi lançada pelo Bando da Lua como a última gravação do grupo em terras brasileiras.
Só Louco
“Só Louco” encerra quaisquer racionalidade sobre questões impalpáveis ligadas ao momento mágico do amor. Nada baseado em pensamentos bem articulados pode modificar o curso dessa direção quando o barco deu sua partida, e ele só aportará mesmo após tempestades. O único momento de se compreender essa loucura é durante sua realização, e ele imediatamente nos escapa, quando menos esperamos. O samba-canção lançado pelo próprio Dorival Caymmi em 1956 ganhou regravação primorosa de Gal Costa, em 1976. “Só louco, amou, como eu amei, só louco, quis o bem que eu quis. Ah insensato coração, porque me fizeste sofrer, se de amor para entender, é preciso amar, por que...”
Dora
“Dora” é o encantamento com o inatingível. Um samba-canção com introdução de frevo que alude à festa onde Dorival Caymmi avistou a tal rainha. Também homenagem ao Recife, presente no charme dançante da morena. A mudança de tom na melodia para incorporar a chegada suntuosa da Banda Militar e seus clarins respalda a inventividade musical de um músico que nunca estudou música, contendo-a em si. O chamado pela moça ao final da letra pressagia seu distanciamento progressivo: “Ô Dora...Ô Dora...” Lançada em 1945 por Caymmi e regravada por Nelson Gonçalves, Gal Costa, e muitos outros: “Dora, rainha do frevo e do maracatu, ninguém requebra nem dança melhor do que tu...”
João Valentão
A fachada rústica pode conter um coração sensível. É essa a constatação dos que ouvem a rotina de “João Valentão”, um homem à primeira vista bruto, mas que guarda em seu interior a capacidade de avistar a vida com admiração, nobreza e calma. É quando João abstrai a simplicidade que alcança seu grau de mais extrema beleza, numa variedade que permeia a construção desse samba de 1953, lançado por Dorival Caymmi, e que inicia num rompante de intempestividade para depois dar à luz a calmaria. “E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há...”
Saudade de Itapoã
“É tão terna a descoberta da amizade”, dizia Caymmi sobre Zezinho, grande companheiro que o acompanhou no Rio. Era também o apelido de um dono de rede que dava “emprego àquele gente humilde” de Itapoã, praia contemplada em sua bela canção, de 1948. Apresentado à região pelo pai, também tocador de violão, piano e bandolim, além de funcionário público do estado da Bahia, Dorival morreu de amores pela região e a carregou com profunda saudade: a falta daquilo que se presenciou um dia e ainda habita, em outras cintilações. “Coqueiro de Itapoã, coqueiro. Areia de Itapoã, areia. Morena de Itapoã, morena. Saudade de Itapoã, me deixa...E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã”.
O Bem do Mar
“Um pescador tem dois amor, um bem na terra, um bem no mar”. O Bem do Mar de Dorival Caymmi tem andamento similar ao movimento das ondas que carregam sabores e dissabores da vida. A presença afetiva da mulher à beira da praia e seu medo de perder o marido para o outro amor, à sua frente, do qual também depende sua sobrevivência, e pode ser ele a levá-lo para sempre. “O bem do mar é o mar é o mar...” Canção praieira lançada em 1973, intitulando o estilo, característico, de Dorival Caymmi.
Maracangalha
“Maracangalha” é uma filosofia de vida. O discurso do homem livre que não se limita a condições, e enxerga tudo com naturalidade, como possibilidades viáveis. É assim o convite feito à Anália sem a imposição de ser aceito e sem o sofrimento caso não ocorra, afinal tudo é passível de acontecimento e nada é assim tão dramático. Por isso guarda uma sabedoria, acompanhado ou não da companhia pretendida. Sendo assim, “Eu vou pra Maracangalha, eu vou. Eu vou de uniforme branco, eu vou. Eu vou de chapéu de palha, eu vou. Eu vou convidar Anália, eu vou. Se Anália não quiser ir eu vou só, eu vou só, eu vou só. Se Anália não quiser eu vou só, eu vou só sem Anália mas eu vou...” Samba de 1956, sucesso do carnaval daquele ano na interpretação de Dorival Caymmi, que segundo próprio depoimento compôs de uma só vez, ao contrário do que ocorria com outras músicas.
O Mar
“O Mar” retrata a angústia e a desolação de uma vida assolada pela face trágica da natureza. Rosinha de Chica perde seu amor e a razão à vida nos braços impiedosos das águas itinerantes. Seu coro de despedida entoado frente ao algoz é o consolo de uma existência que se extinguiu com o outro. Dorival Caymmi narra a beleza destruidora da força que rompe o tempo e é capaz de impor sentimentos diversos aos que se encontram com ele. Canção de 1941, lançada por Dorival Caymmi e sua voz de trovar espumas, no encontro de céu e mar, suas cordas seu violão, n’arrebentação calma da vida.
O Vento
A essência cíclica da vida, em movimentos ondulatórios como o vento, que estimula com seu sopro a continuidade das coisas. “O Vento”, canção praieira de 1949 integra o estímulo inicial à consagração obtida. Talvez por essa razão, Dorival tenha sempre entoado suas raízes, por saber que no início delas é que se construiu a frondosa árvore que floriu no Rio de Janeiro, sempre com muitos pingos baianos. “Vamos chamar o vento, vamos chamar o vento. Vento que dá na vela. Vela que leva o barco. Barco que leva a gente. Gente que leva o peixe. Peixe que dá dinheiro, curimã.” A palavra final é repetida em ritmo folclorista. Como um mantra.
Modinha para Gabriela
Títulos não alcançam perfumes. O que se é não se altera, permanece súbito e intransponível. Assim nasceu Gabriela, assim cresceu Gabriela, alheia aos cartazes do mundo. Modinha de 1975, composta para novela da Rede Globo, a música traz em tom debochado e irreverente o esplendor da personagem. Cantada por Gal Costa e interpretada por Sônia Braga, tornou-se atemporal.
Noite de Temporal
Caymmi ambienta o clima da noite negra e medonha evocando dialetos típicos africanos, presentes na cultura baiana através do misticismo, candomblé e religiosidade. “Noite de Temporal” permanece em tempo de espera, inquietação, dúvida...e a crença no regresso do filho que enfrentou o mar. Lançada em 1940, canção praieira refletida em sombras castigadas pelo peso da chuva, foi uma das primeiras registradas por Dorival Caymmi.
O que é que a baiana tem?
O encontro com Carmen Miranda não poderia ser mais feliz e fortuito. Recém chegado ao Rio de Janeiro em 1938, foi apresentado à estrela por Braguinha e Almirante. Conquistar sua majestade teria sido tarefa árdua não fosse Caymmi um especialista, que tratou de vesti-la com os adereços que merecia. Malícia e malemolência costuram os rendados do vestido da baiana. Afinal “O que é que a baiana tem?”
Acalanto
“Acalanto” é uma canção de ninar composta por Dorival Caymmi em 1957 para sua filha Nana Caymmi, que depois viria a cantá-la com ele. Com ternura e serenidade, revela o incondicional do amor paterno. Alguém a dedicar seus amores, carinhos, cuidados, para que o existir se valha.
Das Rosas
“Das Rosas” é um elogio à beleza. Uma canção otimista que presta homenagem ao despertar das delícias. Com uma jogada de classe, Caymmi pratica caprichosa estripulia ao oferecer aos ouvidos esse samba-valsa de 1964, cantado na companhia do Quarteto em Cy e lançado em versão inglesa nos Estados Unidos, traduzido e interpretado por Ray Gilbert.
Oração de Mãe Menininha
“Oração de Mãe Menininha” é um agradecimento sincero de Dorival Caymmi à iluminação que ele e a Bahia recebem da mãe-de-santo mais reverenciada de Salvador, apregoando sua crença no candomblé. Feita em comemoração aos 50 anos da ialorixá, Caymmi afirmou que o título da canção se pronuncia na boca do povo: “de Mãe Menininha”, assim como dizem “de Santo Antônio”. Samba lançado em 1972 que marcou terreiro nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Clementina de Jesus.
Saudade da Bahia
“Pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. É com saudade do que não se compra que Caymmi confidencia um olhar nostálgico sobre a vida. Agarrado às estrelas marítimas, nunca se prendeu a algas marinhas, que pegam pelo pé e reservam somente um instante de ilusão e susto. A real presença do intocável é que conduziu seus passos em águas profundas. As rasas, ele largou para os interessados. Largado em uma rede imaginária Caymmi canta, em 1957: “Ai, ai que saudade tenho da Bahia. Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia”.
Eu não tenho onde morar
Caymmi era filho de pai tocador de instrumento e mãe que cantava em casa. Um imigrante italiano, a outra negra baiana. Durval e Aurelina. Seus filhos, Dori, Nana e Danilo, seguiram o mesmo caminho, o último se especializando na flauta, progressão do assovio, tão entoado nas introduções que levam o vento de Dorival Caymmi. Exaltando a falta para justificar presença, Caymmi compôs em 1960 um belo samba, “Eu não tenho onde morar”, onde a areia substitui a casa com todas as conseqüências. Caymmi morou na música. Mora, na música: “Eu não tenho onde morar, é por isso que eu moro na areia. Eu não tenho onde morar. É por isso que eu moro na areia. Eu nasci pequenininho, como todo mundo nasceu. Todo mundo mora direito, quem mora torto sou eu.”
Peguei um Ita no Norte
A incerteza e a insegurança que provém de um futuro que acena ao longe, no entanto próximo. É esse o mote que conduz a caravana de Dorival Caymmi rumo à nova realidade. Os desafios que se encontrarão no Rio de Janeiro não serão os mesmos que ele desvendou na Bahia, por isso ele guarda mais que lembranças, o conselho da mãe: “Meu filho, ande direito, que é pra Deus lhe ajudar”. Quando pegou um Itapé que depois ele resumiu em Ita e suspirou a despedida de Belém do Pará, Dorival Caymmi levou para si os ensinamentos de violão do pai e do tio Cici, e também as canções aprendidas de Ary Barroso, que depois ele conheceu pessoalmente e gravou disco em parceria, Vicente Celestino, entre outros. Logo, a idéia do curso de direito seria abandonada, pro bem da música brasileira. Lançada em 1945 na voz de Dorival Caymmi, “Peguei um Ita no Norte” recebeu regravação de Gal Costa.
Vatapá
Dorival Caymmi distribui todos os ingredientes típicos do “Vatapá” nos versos do samba criado por ele em 1942, e ainda adiciona um novo: a presença da nega baiana que saiba mexer. Esse samba de dar água na boca de quem o escuta, mexe com as cadeiras da nega e o paladar do baiano, temperando com camarão, pimenta, castanha do pará, gengibre e cebola, o rico cardápio musical criado pelo mestre Dorival Caymmi. É o vatapá baiano com dendê da boa terra, trazendo a influência africana e seu gosto forte para a música brasileira. Agregando valor inestimável à tradição misturada de sua gente.
Nem eu
Que o homem controle o mundo, destrua tudo, exerça poder sobre o outro. O amor escapa. Não pertence por desejo, não cai por gentileza, somente chega sem imposição. Ás vezes se estabelece, noutras, desvia. “Quem inventou o amor não fui eu. Não fui eu, não fui eu, não fui eu nem ninguém. O amor acontece na vida, estavas desprevenida, e por acaso eu também. E como o acaso é importante, querida. De nossas vidas a vida. Fez um brinquedo também.” Em 1952, Dorival Caymmi fez samba-canção sobre a incapacidade humana de escolha, ao menos, sobre o sentimento amor.
A Vizinha do Lado
“A Vizinha do Lado” é um samba com sotaque carioca em que Dorival Caymmi almeja a tentação proibida: “A vizinha quando passa com seu vestido grená, todo mundo diz que é boa, mas como a vizinha não há. Ela mexe com as cadeiras pra cá, ela mexe com as cadeiras, pra lá. Ela mexe com o juízo do homem que vai trabalhar”. Lançada em 1946 pelo próprio autor, recebeu regravações de Chico Buarque, Lúcio Alves, Vânia Bastos e Roberta Sá.
Sábado em Copacabana
Dorival Caymmi virou praça em Itapoã e chegou meio tímido ao Rio de Janeiro. Até que resolveu homenagear uma importante praia da cidade em 1952, em parceria com Carlos Guinle. Cantada por Lúcio Alves, “Sábado em Copacabana” virou autêntica dedicatória e ganhou lugar cativo no coração dos cariocas. Esbanjando o charme, Dorival recita: “Um bom lugar, pra encontrar, Copacabana. Pra passear, à beira-mar, Copacabana”.
A Lenda do Abaeté
Dorival Caymmi aprendeu em Salvador a ilustração, ao trabalhar em jornais. Aprendeu a música, ao ganhar em 1936 um concurso de carnaval. E aprendeu a vender seu peixe e ler as lendas do seu povoado. “A Lenda do Abaeté”, de 1948, reproduz o clima sombrio e tenebroso de mais uma canção praieira. Como é do feitio das composições de Caymmi, aos poucos a escuridão ilumina-se em sua beleza que se esconde detrás de espinhais folclóricos. E os corais revelam o que o olho teme enxergar. Produz impacto tão forte que é preciso coragem para se chegar lá. Um brilho ostensivo que encanta, admira e assusta. É ter inocência de criança, e ver quanto linda a lagoa é.
É doce morrer no mar
Só a morte a encerrar o ciclo da vida, admite continuação. O salgado mar pode abrigar velas doces de madeira, corações que irão se afogar no colo de Iemanjá, e descansar em novo abrigo. As águas que levam são as mesmas a trazer. Segue o curso da vida, com quebradas, remendos, com belas embarcações, segue o curso, vida. Compuseram dois velhos amigos, Jorge Amado e Dorival Caymmi, “É doce morrer no mar”, 1941. Costumavam ser confundidos. Olhos de sal, bigode de espuma. Bahia na boca. Estatura larga, porém mediana. Rio comprido que desemboca no mar e segue seu fluxo intermitente, alheio aos desfeitos dos homens, d’areia, do vento que possa lhe machucar. Segue, e se esparsa espontâneo. Cada vez mais grudado no sal dos cabelos, do corpo, da essência perene em gotas de eternidade.
“Nas ondas verdes do mar” Dorival Caymmi
Rede balança a pena do pintor-poeta. Mãos do barro esculpidas n’água. Pedras de areia brincam pele bronzeada. Brincos e badulaques. O mar espreguiça em peixes verdes verdades vidas levadas trazidas pela correnteza, na harmonia Dorival Caymmi.
Marina
“Marina” conta a história do homem fragilizado diante da força sedutora da sua mulher. Inspirada num mau trato do filho pequeno de Dorival, o que viria a se tornar o cantor e compositor Dori Caymmi, então com três anos idade, que repetia ‘ to de mal com você’, quando contrariado. E foi nesse pequeno gesto infantil que Dorival percebeu que o homem contrariado tende a abolir as questões da maturidade, razão pela qual os romances são sempre difíceis, conduzidos pela volúvel emoção. Fora isso, a canção lançada em 1947 por quatro cantores diferentes, (Dick Farney, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, e o próprio autor), rompeu com uma lenda da indústria fonográfica e marcou um costume feminino da época que veio a se consolidar nas décadas seguintes: o de se maquiarem. “Marina morena, Marina, você se pintou...”. O veredito de Dorival Caymmi contra esse tipo de artifício revela sua profunda ligação com a natureza, com as coisas em seu estado natural e integrado: “Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu...”
O Samba da Minha Terra
“O Samba da Minha Terra”, é a declaração de amor de Dorival Caymmi às suas raízes musicais e terrenas. Confundem-se Bahia e samba na trajetória desse fruto da boa terra que chegou ainda moço ao Rio de Janeiro, e no mesmo ano da composição, em 1940, jurou novo amor eterno: à cantora Stela Maris, sua companheira durante toda vida. O verso em forma de ditado popularizou-se tal qual algo que se prega à nossa personalidade e que se colhe no berço, nos primeiros passos dados, em terra firme ou alto mar: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça, ou doente do pé!”. Foi lançada pelo Bando da Lua como a última gravação do grupo em terras brasileiras.
Só Louco
“Só Louco” encerra quaisquer racionalidade sobre questões impalpáveis ligadas ao momento mágico do amor. Nada baseado em pensamentos bem articulados pode modificar o curso dessa direção quando o barco deu sua partida, e ele só aportará mesmo após tempestades. O único momento de se compreender essa loucura é durante sua realização, e ele imediatamente nos escapa, quando menos esperamos. O samba-canção lançado pelo próprio Dorival Caymmi em 1956 ganhou regravação primorosa de Gal Costa, em 1976. “Só louco, amou, como eu amei, só louco, quis o bem que eu quis. Ah insensato coração, porque me fizeste sofrer, se de amor para entender, é preciso amar, por que...”
Dora
“Dora” é o encantamento com o inatingível. Um samba-canção com introdução de frevo que alude à festa onde Dorival Caymmi avistou a tal rainha. Também homenagem ao Recife, presente no charme dançante da morena. A mudança de tom na melodia para incorporar a chegada suntuosa da Banda Militar e seus clarins respalda a inventividade musical de um músico que nunca estudou música, contendo-a em si. O chamado pela moça ao final da letra pressagia seu distanciamento progressivo: “Ô Dora...Ô Dora...” Lançada em 1945 por Caymmi e regravada por Nelson Gonçalves, Gal Costa, e muitos outros: “Dora, rainha do frevo e do maracatu, ninguém requebra nem dança melhor do que tu...”
João Valentão
A fachada rústica pode conter um coração sensível. É essa a constatação dos que ouvem a rotina de “João Valentão”, um homem à primeira vista bruto, mas que guarda em seu interior a capacidade de avistar a vida com admiração, nobreza e calma. É quando João abstrai a simplicidade que alcança seu grau de mais extrema beleza, numa variedade que permeia a construção desse samba de 1953, lançado por Dorival Caymmi, e que inicia num rompante de intempestividade para depois dar à luz a calmaria. “E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há...”
Saudade de Itapoã
“É tão terna a descoberta da amizade”, dizia Caymmi sobre Zezinho, grande companheiro que o acompanhou no Rio. Era também o apelido de um dono de rede que dava “emprego àquele gente humilde” de Itapoã, praia contemplada em sua bela canção, de 1948. Apresentado à região pelo pai, também tocador de violão, piano e bandolim, além de funcionário público do estado da Bahia, Dorival morreu de amores pela região e a carregou com profunda saudade: a falta daquilo que se presenciou um dia e ainda habita, em outras cintilações. “Coqueiro de Itapoã, coqueiro. Areia de Itapoã, areia. Morena de Itapoã, morena. Saudade de Itapoã, me deixa...E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã”.
O Bem do Mar
“Um pescador tem dois amor, um bem na terra, um bem no mar”. O Bem do Mar de Dorival Caymmi tem andamento similar ao movimento das ondas que carregam sabores e dissabores da vida. A presença afetiva da mulher à beira da praia e seu medo de perder o marido para o outro amor, à sua frente, do qual também depende sua sobrevivência, e pode ser ele a levá-lo para sempre. “O bem do mar é o mar é o mar...” Canção praieira lançada em 1973, intitulando o estilo, característico, de Dorival Caymmi.
Maracangalha
“Maracangalha” é uma filosofia de vida. O discurso do homem livre que não se limita a condições, e enxerga tudo com naturalidade, como possibilidades viáveis. É assim o convite feito à Anália sem a imposição de ser aceito e sem o sofrimento caso não ocorra, afinal tudo é passível de acontecimento e nada é assim tão dramático. Por isso guarda uma sabedoria, acompanhado ou não da companhia pretendida. Sendo assim, “Eu vou pra Maracangalha, eu vou. Eu vou de uniforme branco, eu vou. Eu vou de chapéu de palha, eu vou. Eu vou convidar Anália, eu vou. Se Anália não quiser ir eu vou só, eu vou só, eu vou só. Se Anália não quiser eu vou só, eu vou só sem Anália mas eu vou...” Samba de 1956, sucesso do carnaval daquele ano na interpretação de Dorival Caymmi, que segundo próprio depoimento compôs de uma só vez, ao contrário do que ocorria com outras músicas.
O Mar
“O Mar” retrata a angústia e a desolação de uma vida assolada pela face trágica da natureza. Rosinha de Chica perde seu amor e a razão à vida nos braços impiedosos das águas itinerantes. Seu coro de despedida entoado frente ao algoz é o consolo de uma existência que se extinguiu com o outro. Dorival Caymmi narra a beleza destruidora da força que rompe o tempo e é capaz de impor sentimentos diversos aos que se encontram com ele. Canção de 1941, lançada por Dorival Caymmi e sua voz de trovar espumas, no encontro de céu e mar, suas cordas seu violão, n’arrebentação calma da vida.
O Vento
A essência cíclica da vida, em movimentos ondulatórios como o vento, que estimula com seu sopro a continuidade das coisas. “O Vento”, canção praieira de 1949 integra o estímulo inicial à consagração obtida. Talvez por essa razão, Dorival tenha sempre entoado suas raízes, por saber que no início delas é que se construiu a frondosa árvore que floriu no Rio de Janeiro, sempre com muitos pingos baianos. “Vamos chamar o vento, vamos chamar o vento. Vento que dá na vela. Vela que leva o barco. Barco que leva a gente. Gente que leva o peixe. Peixe que dá dinheiro, curimã.” A palavra final é repetida em ritmo folclorista. Como um mantra.
Modinha para Gabriela
Títulos não alcançam perfumes. O que se é não se altera, permanece súbito e intransponível. Assim nasceu Gabriela, assim cresceu Gabriela, alheia aos cartazes do mundo. Modinha de 1975, composta para novela da Rede Globo, a música traz em tom debochado e irreverente o esplendor da personagem. Cantada por Gal Costa e interpretada por Sônia Braga, tornou-se atemporal.
Noite de Temporal
Caymmi ambienta o clima da noite negra e medonha evocando dialetos típicos africanos, presentes na cultura baiana através do misticismo, candomblé e religiosidade. “Noite de Temporal” permanece em tempo de espera, inquietação, dúvida...e a crença no regresso do filho que enfrentou o mar. Lançada em 1940, canção praieira refletida em sombras castigadas pelo peso da chuva, foi uma das primeiras registradas por Dorival Caymmi.
O que é que a baiana tem?
O encontro com Carmen Miranda não poderia ser mais feliz e fortuito. Recém chegado ao Rio de Janeiro em 1938, foi apresentado à estrela por Braguinha e Almirante. Conquistar sua majestade teria sido tarefa árdua não fosse Caymmi um especialista, que tratou de vesti-la com os adereços que merecia. Malícia e malemolência costuram os rendados do vestido da baiana. Afinal “O que é que a baiana tem?”
Acalanto
“Acalanto” é uma canção de ninar composta por Dorival Caymmi em 1957 para sua filha Nana Caymmi, que depois viria a cantá-la com ele. Com ternura e serenidade, revela o incondicional do amor paterno. Alguém a dedicar seus amores, carinhos, cuidados, para que o existir se valha.
Das Rosas
“Das Rosas” é um elogio à beleza. Uma canção otimista que presta homenagem ao despertar das delícias. Com uma jogada de classe, Caymmi pratica caprichosa estripulia ao oferecer aos ouvidos esse samba-valsa de 1964, cantado na companhia do Quarteto em Cy e lançado em versão inglesa nos Estados Unidos, traduzido e interpretado por Ray Gilbert.
Oração de Mãe Menininha
“Oração de Mãe Menininha” é um agradecimento sincero de Dorival Caymmi à iluminação que ele e a Bahia recebem da mãe-de-santo mais reverenciada de Salvador, apregoando sua crença no candomblé. Feita em comemoração aos 50 anos da ialorixá, Caymmi afirmou que o título da canção se pronuncia na boca do povo: “de Mãe Menininha”, assim como dizem “de Santo Antônio”. Samba lançado em 1972 que marcou terreiro nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Clementina de Jesus.
Saudade da Bahia
“Pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. É com saudade do que não se compra que Caymmi confidencia um olhar nostálgico sobre a vida. Agarrado às estrelas marítimas, nunca se prendeu a algas marinhas, que pegam pelo pé e reservam somente um instante de ilusão e susto. A real presença do intocável é que conduziu seus passos em águas profundas. As rasas, ele largou para os interessados. Largado em uma rede imaginária Caymmi canta, em 1957: “Ai, ai que saudade tenho da Bahia. Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia”.
Eu não tenho onde morar
Caymmi era filho de pai tocador de instrumento e mãe que cantava em casa. Um imigrante italiano, a outra negra baiana. Durval e Aurelina. Seus filhos, Dori, Nana e Danilo, seguiram o mesmo caminho, o último se especializando na flauta, progressão do assovio, tão entoado nas introduções que levam o vento de Dorival Caymmi. Exaltando a falta para justificar presença, Caymmi compôs em 1960 um belo samba, “Eu não tenho onde morar”, onde a areia substitui a casa com todas as conseqüências. Caymmi morou na música. Mora, na música: “Eu não tenho onde morar, é por isso que eu moro na areia. Eu não tenho onde morar. É por isso que eu moro na areia. Eu nasci pequenininho, como todo mundo nasceu. Todo mundo mora direito, quem mora torto sou eu.”
Peguei um Ita no Norte
A incerteza e a insegurança que provém de um futuro que acena ao longe, no entanto próximo. É esse o mote que conduz a caravana de Dorival Caymmi rumo à nova realidade. Os desafios que se encontrarão no Rio de Janeiro não serão os mesmos que ele desvendou na Bahia, por isso ele guarda mais que lembranças, o conselho da mãe: “Meu filho, ande direito, que é pra Deus lhe ajudar”. Quando pegou um Itapé que depois ele resumiu em Ita e suspirou a despedida de Belém do Pará, Dorival Caymmi levou para si os ensinamentos de violão do pai e do tio Cici, e também as canções aprendidas de Ary Barroso, que depois ele conheceu pessoalmente e gravou disco em parceria, Vicente Celestino, entre outros. Logo, a idéia do curso de direito seria abandonada, pro bem da música brasileira. Lançada em 1945 na voz de Dorival Caymmi, “Peguei um Ita no Norte” recebeu regravação de Gal Costa.
Vatapá
Dorival Caymmi distribui todos os ingredientes típicos do “Vatapá” nos versos do samba criado por ele em 1942, e ainda adiciona um novo: a presença da nega baiana que saiba mexer. Esse samba de dar água na boca de quem o escuta, mexe com as cadeiras da nega e o paladar do baiano, temperando com camarão, pimenta, castanha do pará, gengibre e cebola, o rico cardápio musical criado pelo mestre Dorival Caymmi. É o vatapá baiano com dendê da boa terra, trazendo a influência africana e seu gosto forte para a música brasileira. Agregando valor inestimável à tradição misturada de sua gente.
Nem eu
Que o homem controle o mundo, destrua tudo, exerça poder sobre o outro. O amor escapa. Não pertence por desejo, não cai por gentileza, somente chega sem imposição. Ás vezes se estabelece, noutras, desvia. “Quem inventou o amor não fui eu. Não fui eu, não fui eu, não fui eu nem ninguém. O amor acontece na vida, estavas desprevenida, e por acaso eu também. E como o acaso é importante, querida. De nossas vidas a vida. Fez um brinquedo também.” Em 1952, Dorival Caymmi fez samba-canção sobre a incapacidade humana de escolha, ao menos, sobre o sentimento amor.
A Vizinha do Lado
“A Vizinha do Lado” é um samba com sotaque carioca em que Dorival Caymmi almeja a tentação proibida: “A vizinha quando passa com seu vestido grená, todo mundo diz que é boa, mas como a vizinha não há. Ela mexe com as cadeiras pra cá, ela mexe com as cadeiras, pra lá. Ela mexe com o juízo do homem que vai trabalhar”. Lançada em 1946 pelo próprio autor, recebeu regravações de Chico Buarque, Lúcio Alves, Vânia Bastos e Roberta Sá.
Sábado em Copacabana
Dorival Caymmi virou praça em Itapoã e chegou meio tímido ao Rio de Janeiro. Até que resolveu homenagear uma importante praia da cidade em 1952, em parceria com Carlos Guinle. Cantada por Lúcio Alves, “Sábado em Copacabana” virou autêntica dedicatória e ganhou lugar cativo no coração dos cariocas. Esbanjando o charme, Dorival recita: “Um bom lugar, pra encontrar, Copacabana. Pra passear, à beira-mar, Copacabana”.
A Lenda do Abaeté
Dorival Caymmi aprendeu em Salvador a ilustração, ao trabalhar em jornais. Aprendeu a música, ao ganhar em 1936 um concurso de carnaval. E aprendeu a vender seu peixe e ler as lendas do seu povoado. “A Lenda do Abaeté”, de 1948, reproduz o clima sombrio e tenebroso de mais uma canção praieira. Como é do feitio das composições de Caymmi, aos poucos a escuridão ilumina-se em sua beleza que se esconde detrás de espinhais folclóricos. E os corais revelam o que o olho teme enxergar. Produz impacto tão forte que é preciso coragem para se chegar lá. Um brilho ostensivo que encanta, admira e assusta. É ter inocência de criança, e ver quanto linda a lagoa é.
É doce morrer no mar
Só a morte a encerrar o ciclo da vida, admite continuação. O salgado mar pode abrigar velas doces de madeira, corações que irão se afogar no colo de Iemanjá, e descansar em novo abrigo. As águas que levam são as mesmas a trazer. Segue o curso da vida, com quebradas, remendos, com belas embarcações, segue o curso, vida. Compuseram dois velhos amigos, Jorge Amado e Dorival Caymmi, “É doce morrer no mar”, 1941. Costumavam ser confundidos. Olhos de sal, bigode de espuma. Bahia na boca. Estatura larga, porém mediana. Rio comprido que desemboca no mar e segue seu fluxo intermitente, alheio aos desfeitos dos homens, d’areia, do vento que possa lhe machucar. Segue, e se esparsa espontâneo. Cada vez mais grudado no sal dos cabelos, do corpo, da essência perene em gotas de eternidade.
“Nas ondas verdes do mar” Dorival Caymmi
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