domingo, 15 de maio de 2011

A Hora do Coroa

Postado por Raphael Vidigal on domingo, maio 15, 2011 with Faça um comentário
Homenagem à Paulo Vanzolini, texto de Raphael Vidigal




O homem de cachimbo vem com lagarto no ombro, cobra enrolada nos pés, lagartixa na palma da mão. Arrisca-se quem resumi-lo cientista. Ele também o é, especialista em samba sem diplomacia. Se puder imaginá-lo, pense na pintura de Magritte, nas experimentações de um Einstein, no avanço das tropas de Napoleão. E terás o retrato abstrato do erudito mais popular brasileiro! Paulo Vanzolini.

Ronda

“Para mim acorde é que nem latir para cavalo”. O que não o impede de falar a língua dos músicos, através da poesia e da inseparável boemia. Em suas experiências noturnas farreando ou mesmo vigilante como cabo do exército, Paulo Vanzolini retirou o essencial para sua pequena, porém qualitativa, produção de sambas. Um dos mais emblemáticos nasceu em 1951, e só foi chegar ao disco dois anos depois, por acaso do destino e ingenuidade de Inezita Barroso, que não sabia que disco possuía lado B. Para ela então, amiga do casal Vanzolini, foi destinada a felicidade de lançar o compositor-cientista, sem a mínima repercussão, que só veio quando a canção já era cantada há 14 anos por boêmios inveterados, na gravação em 1977 de Márcia: “de noite eu rondo a cidade, a te procurar, sem encontrar...”. Mais um caso passional onde o amor se envolveu com as páginas de sangue do jornal na manhã seguinte.



Volta por cima

“Samba é que nem osso, uma vez que tá na rua, vai na boca de qualquer cachorro”, riu-se Vanzolini, quando perguntado por Zé Henrique o que fazer com a música que este havia ganhado, e que por briga com a gravadora, não poderia gravá-la. Foi então que “Volta por cima” encontrou Noite Ilustrada, e por três semanas consecutivas angariou o primeiro lugar nas paradas de sucesso do ano de 1962. Notícia que seu autor só veio a ter quando voltou de sua viagem à Amazônia, entretido com os afazeres da zoologia, e ouviu no rádio sua exaltação para aquilo que ficaria conhecido no dicionário Aurélio da Língua Portuguesa como “ato de superar uma situação difícil”, cantada com emoção ímpar por Elza Soares: “Chorei, não procurei esconder, todos viram, fingiram, pena de mim não precisava, ali onde eu chorei qualquer um chorava, dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava.” Para ele, a parte mais importante da letra não está no título, mas no verso ‘reconhece a queda’.



Samba erudito

Só mesmo o irônico Paulo Vanzolini, com toda sua robustez ranzinza, para misturar em uma canção popular Pôncio Pilatos, Santos Dummont, Olavo Bilac e São Pedro, resultado de sua formação intelectualizada, como ele mesmo afirma. O “Samba erudito” foi lançado em 1967 por Chico Buarque.

Chorava no meio da rua

Paulo Vanzolini descamba a maioria das gravações feitas com seu repertório. Delineia que Maria Bethânia é “muito mais uma declamadora do que uma cantora”, e que a suposta homenagem de Caetano Veloso ao introduzir partes de “Ronda” em “Sampa”, está mais para plágio. No entanto, o compositor-cientista rende-se ao charme do canto de Cristina Buarque, que desaforada, teve a audácia de modificar uma composição sua, fato que segundo ele próprio, o deixa bastante irritado. Só que dessa vez não foi o caso, Vanzolini acatou a sabedoria da irmã mais nova de Chico Buarque, segundo Cartola, “cantora pra compositor”, que entoou em 1967 os versos do samba assumido: “Se eu tivesse que chorar, chorava no meio da rua...”



Capoeira do Arnaldo

Samba para Paulo Vanzolini sempre foi sinônimo de diversão, brincadeira, e não haveria razão de sê-lo não fosse pelos amigos, pela boemia, embora as horas de talhar os versos lhe fossem bastante desgastantes. Valia a pena pelo amor às palavras, jamais pela intenção de gravá-las em disco, ganhar dinheiro, fazer disso uma profissão. Para esse trato, cabia-lhe a zoologia, paixão que nascera com ele, e aflorou em passeio de bicicleta pelo Butantã. “Capoeira do Arnaldo” surgiu de uma provocação irritada de Arnaldo Horta, grande amigo, que não concebia o fato de Carybé, um gringo argentino apaixonado pelo Brasil, contratado pelo governo da Bahia para fazer uns desenhos populares na cidade, saber mais de candomblé do que os brasileiros. Foi isso que motivou Paulo Vanzolini a compor a capoeira, um rugido de mamífero que se transformou em pássaro a voar sem ninho. A história do nordestino que migra de sua terra em busca do destino. Puro folclore realista.



Maria que ninguém queria

Na década de 50, com o aperto financeiro batendo à porta, Vanzolini, pesquisador do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, logo se enturmou com os bambas da TV Record. Foi ele o responsável por domar a fera doce Aracy de Almeida, e resolver a impossibilidade da cantora em decorar as letras, transformando-a em dona de botequim, e colocando uma máquina registradora à sua frente, com tudo o que ela precisava cantar, naturalmente. Nessa mesma década, ele produziu junto com Raul Duarte o primeiro Festival da Velha Guarda, que reergueu Pixinguinha, João da Baiana, Donga, e muitos outros. Já completamente entrosado no meio musical, em 1974 foi a sua vez de receber homenagem, através do amigo Marcus Pereira, dono da gravadora de mesmo nome, e dos cantores Paulo Marques e Carmen Costa, que sambaram, entre tantas, a irresistível “Maria que ninguém queria”, composição que esbanja o humor afiado e incorreto de Paulo, destilando as ironias vorazes sobre um caso conjugal cheio de convenções absurdas e incrivelmente aceitas com naturalidade: “Maria que ninguém queria, eu resolvi reformar...Orgulho eu não tenho, mas sou homem demais pra 50%!”



Mente

“Para cantar nos meus discos é obrigatório ter duas qualidades: ser meu amigo e ter bom caráter”. É essa afirmativa que enchem as obras dedicadas à Paulo Vanzolini de músicos consagrados e ilustres desconhecidos do grande público, com a realeza de gozarem do prestígio da amizade do compositor. Luiz Carlos Paraná comandou com ele o famoso bar “Jogral”, um dos primeiros de São Paulo dedicado à música, e foi o responsável pelo abatimento gradual de Vanzolini após sua morte, em 1970. Adauto Santos tornou-se o responsável por levar às notas o canto que ele guardava na cabeça. Poucos outros tiveram tamanho privilégio, dentre eles, Eduardo Gudin, que em 1978 dividiu duas composições com o compositor-poeta, “Longe de casa”, e “Mente”, reiterada por Clara Nunes no mesmo ano, com a acentuação perfeita das contradições fetichistas: “Mente, ainda é uma saída, é uma hipótese de vida, mente, sai dizendo que me ama...Pois na mentira, meu amor, crer eu não creio, só pretendo que de tanto mentir, repetir que me ama, você mesma acabe crendo”



Na boca da noite

O elo entre Paulo Vanzolini e a música chama-se poesia. O que não é difícil perceber, basta constatar a inaptidão do compositor com qualquer instrumento de cordas, sopro ou batuque, embora ele os adore. Nunca soube reparar “as frescuras” de João Gilberto, amigo que conheceu moço. Em sua juventude lançou “Lira”, livro de poesias. Depois “Tempos de Cabo”, com o mesmo sumo poético, recolhido dos tempos de exército. “Na boca da noite”, é exemplo bem acabado dessa característica de sua pessoalidade, embora o próprio advirta que ela não estava pronta quando o apressado Antônio Pecci, apelidado Toquinho, resolveu lançá-la. Senão teria tirado o sétimo lugar no II Festival Internacional da Canção promovido pela TV Globo, e não o oitavo, revigora sua picardia. Seja como for, as imagens do samba de 1967, são de beleza poética, e talvez, justamente, por estarem inacabadas sob o olhar do poeta. “Nuvem alta em mão de vento é o jeito da água voltar. Morena, se acaso um dia tempestade te apanhar, não foge da ventania, da chuva que rodopia, sou eu mesmo a te abraçar...Vi um rosto na janela, parei na beira da estrada, cheguei na boca da noite, saí de madrugada...”



Cravo branco

Paulo Vanzolini atesta-se como típico reprodutor em versos das características e da sintaxe paulistana. Nascido na capital do estado é alardeado como um dos grandes nomes musicais da cidade, posto ocupado ao lado de outra sumidade, de quem também foi amigo, o emblemático Adoniran Barbosa. Mas não se esquece de avisar que sua formação é fruto de gênios ouvidos através do rádio carioca: Ary Barroso, Lamartine Babo, Noel Rosa, Mario Reis, Ismael Silva. Ele, inclusive, morou um tempo no Rio de Janeiro em sua infância. “Cravo branco”, lançada por Adauto Santos em 1967 é história que poderia ter acontecido em qualquer lugar do Brasil, mas lhe ocorreu ao escutar com atenção o relato de sua empregada. Pronta a inspiração para recitar o crime cometido por ciúme, embalsamando o pobre com o cravo branco na mão, alento em sua despedida.



Juízo Final

“Eu sou puritano mesmo, sempre fui. Eu tenho 60 músicas e nunca usei a palavra malandro.” Esse rigor estilístico e conceitual de Vanzolini, nunca o impediu de tratar com senso de humor áspero temas de natureza recalcada. A religiosidade foi uma das escolhidas como alvo de seu deboche bem construído. “Juízo Final” é uma satírica composição que reproduz até os toques de harpa tocada pelo recém-aceito anjinho de sua pessoa, que olha para baixo e ri-se da desgraça alheia, “a ingrata que hoje trabalha de salsicha, espetadinha no garfo, satanás fritando a bicha...ô Demônio capricha!”. De uma incorreção saborosa e bem trabalhada por Vanzolini. O humor, quando bem empregado, sem conotações morais e no entretanto, sem fazer concessões popularescas, constitui, sem dúvida nenhuma, um dos baluartes da inteligência.

Leilão

Paulo Vanzolini considera “Leilão” seu samba mais acabado, pronto, intelectualizado. Cantado pela primeira vez em disco por Luiz Carlos Paraná em 1967 rebobina o arrependimento do homem que não arrematou aquilo que desejava, sem revelá-lo, recapeando o caminho de sua vida com “olho de cobra mansa” e “boca de fruta brava”, elementos tradicionalmente folclóricos.



Praça Clóvis

A primeira experiência radiofônica de Vanzolini aconteceu no programa “Consultório Sentimental” apresentado por Cacilda Becker. A primeira experiência musical foi recitando versos nos regionais da universidade. A primeira com os animais para os quais dedicou seus estudos de zoólogo, e tornou-se um dos mais respeitados na área, foi visitando o Butantã. A primeira com poesia talvez tenha sido a “Lira”. Mas não se pode afirmar com exatidão, apenas supor, pois muitos desconfiam que em seu DNA já estavam absortas essas sementes que trouxeram à tona o homem de cachimbo, especialista em samba sem diplomacia, inspirado em fatos pitorescos para compor sua obra: como os batedores de carteira que deram vida à “Praça Clóvis”, samba lançado em 1967 por Chico Buarque, concentrador da ironia do compositor para agradecer ao assalto responsável por levar de sua carteira a foto da mulher desprezada.

“Do povo, de cada um pessoalmente, eu não gosto, mas do povo em geral eu gosto muito.” Paulo Vanzolini

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