domingo, 1 de maio de 2011

A Hora do Coroa

Postado por Acir Antão on domingo, maio 01, 2011 with 1 comentário
Homenagem que fizemos à Geraldo Pereira, texto de Raphael Vidigal




O samba recheado de quebradas marcou a vida irregular do compositor. O rebolado das baianas o colocou no chão. De queixo caído ele assistiria ao rebuliço em torno da bossa nova que ele próprio antecipara, não tivesse partido tão cedo. Sem saber, o mineiro que alimentou fama e discórdia no Rio de Janeiro foi um precoce e um privilegiado. Por ter assistido de perto à criação da Estação Primeira de Mangueira e ter convivido com grandes bambas da malandragem teve o prumo certo para tirar melodia e letra do mel que brotava na sua frente. Nem sempre doce, o sambista Geraldo Pereira foi um prodígio, reconhecido mesmo em sua brevidade, como talvez nunca tivesse sido não fossem as tempestades em sua vida.

Falsa baiana

Geraldo Pereira já perseguia o sucesso há algum tempo quando seu samba estourou na praça, em 1944. O começo da história data de um carnaval em que Geraldo estava no Café Nice, um dos seus pontos prediletos, e viu adentrar o recinto a esposa do compositor Roberto Martins, toda fantasiada de baiana e com uma desanimação de dar dó, ao que ouviu a fala do marido: “Olha aí a falsa baiana”, prontamente começou a matutar em sua cabeça o novo samba sincopado. Ao cantá-lo para Roberto Paiva embolando as letras, já alto depois de umas e outras, recebeu um não do cantor, que se surpreendeu positivamente ao ouvir a música na voz de Ciro Monteiro ecoar nas rádios. A baiana de Geraldo Pereira deixou a mocidade louca! A música foi regravada na década de 70 por Gal Costa, repetindo o êxito que a consagrou.



Sem compromisso

O calado menino Geraldo, que herdara o nome pelo qual ficaria conhecido de uma tia que o manteve sob seus cuidados quando a família foi para o Rio de Janeiro, chegou à capital federal por volta dos 12, 13 anos. Inicialmente com o intento de ajudar o irmão Mané Araújo numa tenda que esse mantinha no morro de Mangueira, acabou desvirtuando seus passos e indo de encontro ao samba. Antes, porém, arrumou emprego como motorista de caminhão de lixo, e seguiu nesse batente até o fim da vida. Acusado de ter um temperamento difícil tornou a público a título de lenda ou realidade a fama de que descumpria compromissos, dava calotes em seus companheiros e até abandonara a mãe no leito de morte para curtir a orgia, o que acarretou uma séria briga com o irmão mais velho. Mas Geraldo Pereira também sabia acusar, como fez em 1944 em parceria com Nelson Trigueiro: “Você só dança com ele e diz que é sem compromisso, é bom acabar com isso...”. Lançado pelos Anjos do Inferno o samba recebeu celebrada regravação de Chico Buarque.



Bolinha de papel

João Gilberto conta que foi Geraldo Pereira um dos inspiradores da batida com a qual ele caracterizou a bossa nova. O sambista bom de bossa, aliás, vivia jogando seu charme para cima das cabrochas de seu convívio. Numa dessas acabou se dando mal, engravidou a moça e foi obrigado a casar, mas nada que impedisse suas peregrinações galantes. Na contagiante “Bolinha de papel”, lançada pelos Anjos do Inferno em 1945, ele declara seu amor capaz de garantir até sossego para a tal Julieta. A música recebeu regravações de Miltinho e do próprio João Gilberto.

Pisei num despacho

Geraldo Pereira migrou de Mangueira depois de conflitos com o irmão Mané, importante e temido na região por acumular os cargos de dono de tenda e funcionário da Central do Brasil, o que lhe garantia alto poderio econômico. Antes de deixar o morro, ele conheceu Cartola e Carlos Cachaça, que fundaram mais tarde a escola de samba mais famosa do local, e teve aulas de violão com Aluísio Dias e Alfredo Português, padrasto de Nelson Sargento. No ano de 1947 ele já desfrutava de certa imponência no meio do samba por conta de gravações recentes que obtiveram alta cota no gosto popular. Nesse mesmo ano, lançou outra delas, que versava sobre os infortúnios de um sujeito que atribuía isso ao fato de ter “pisado num despacho”. Geraldo falava na música sobre a gafieira, um dos ritmos que o ajudaram a inventar o “samba de teleco-teco.” A música foi lançada por Ciro Monteiro e recebeu regravações de Roberto Silva, Jackson do Pandeiro e Zeca Pagodinho.



Chegou a bonitona

Dizem que era difícil fisgar o coração de Geraldo Pereira, embora e por isso mesmo fosse ávido amante de mulheres, mas não se contentava com uma só. Coube a Isabel Mendes da Silva a proeza de capturar o coração do sambista, para quem compôs diversos sambas, mas também dedicou brigas e complicações típicas de seu estilo de vida. Apreciador, esse sim, inveterado da bebida, com predileção pelo conhaque de alcatrão, cachaça e cerveja, não podia ver passar uma bonitona que seus olhinhos já meio bêbados brilhavam de alegria. Talvez tenha sido essa uma das inspirações para ele compor junto com José Batista, “Chegou a bonitona”, gravada em 1948 com enorme sucesso por Blecaute, depois de dada a Ciro Monteiro e retirada pela demora da gravação, o que gerou briga entre o cantor e compositor que resultou em quebra de relação por seis anos. Na posteridade, sua divulgação ficou a cargo da voz cadente de Luiz Melodia.



Pedro do Pedregulho

Embora muito conhecido pelas confusões que propagou ao longo da vida, geradas na maioria por conta de bebida e mulheres, Geraldo Pereira era esforçado divulgador de seu trabalho e também de outros artistas, o que lhe garantiu parcerias com Moreira da Silva (“Na subida do morro”) e Wilson Batista (“Acertei no Milhar”). Na música “Pedro do Pedregulho, o sambista retrata com sensibilidade uma realidade que poderia muito bem ser a sua, tivesse ele dado chance para a calmaria. Mas a poesia impetuosa de Geraldo não permitiu que ele fizesse concessões desse tipo. Ele mesmo lançou como cantor o samba, em 1950.

Ministério da Economia

“Ministério da Economia” era supostamente uma música para fazer afagos em Getúlio Vargas, então presidente do Brasil. Mas o samba não ficou datado justamente pelo caráter irônico que se pode atribuir a ele, ao se constatar o protagonista esbanjando o fato de não precisar “comer mais gato”. A música em parceria com Arnaldo Passos foi novamente lançada pelo próprio Geraldo Pereira, e recebeu regravação do portelense Monarco.



Escurinha

Geraldo Pereira criou em 1952 uma interessante personagem do cancioneiro brasileiro. Ele próprio já tinha experiência nessa área ao trabalhar como ator numa peça de teatro que escreveu e dirigiu, e ao aparecer em filmes interpretando a si mesmo, como no “Brasil na batucada”, de Luiz Barros, em que proclamava: “Não acabou a Praça Onze não!”, por idéia de Herivelto Martins. Essa habilidade, portanto, de observar personalidades típicas do morro, já havia sido demonstrada por ele diversas vezes, mas nunca com tanta desenvoltura quanto no samba “Escurinha”, em parceria com Arnaldo Passos. Na história, Geraldo desenvolve o embate entre o malandro apaixonado e a donzela requisitada: “Escurinha tu tem que ser minha de qualquer maneira, te dou meu boteco, te dou meu barraco, que eu tenho no morro de Mangueira, comigo não há embaraço”. O cantor fez questão de lançar a preciosidade, mais tarde revigorada por Cartola, João Nogueira, Jorge Veiga, Zizi Possi, e outros.

Cabritada malsucedida

Geraldo Pereira teve trajetória errática, não sabendo ao certo qual caminho lhe pertencia até descobrir o samba. Além disso, nunca largou certos vícios que acalentavam suas composições. Nascido em Juiz de Fora, no interior de Minas Gerais, tinha por incerto o nome do pai, embora a mãe Clementina Maria Thedoro lhe afirmasse ser Sebastião Maria, seu segundo marido, com quem teve mais dois filhos além de Geraldo. Os outros eram filhos de Antônio Manuel de Araújo. Apesar dos pesares, pode-se afirmar que Geraldo Pereira foi bem sucedido no intento de tornar-se sambista de renome, embora mais celebrizado após sua passagem por essa vida. Já em 1953, o mote para a linhagem de fino trato do compositor era uma fatídica “Cabritada malsucedida”, em que ele embalava as enrascadas pelas quais passaram os convidados da festa que acabou em caso de polícia. Lançada por ele mesmo, ganhou regravações de Miúcha e Luiz Melodia.



Escurinho

A última música de Geraldo Pereira, lançada em 1955, na voz do “padrinho” – assim ele o chamava – Ciro Monteiro, representa em síntese o universo primordial do compositor, com a batida descompassada e a princípio mal entendida que ele confraternizou com o samba e a bossa nova. Naquele ano, rezaria a lenda propagada, entre outros, pelo próprio autor do ato, ele seria abatido pelo capoeirista pernambucano João Francisco dos Santos, depois de provocar repetidas vezes o Madame Satã, aos 37 anos. No entanto, há quem discorde dessa afirmação, e diga que a causa da morte foram os problemas intestinais que Geraldo sempre carregou, agravados pela bebida e pelo soco. Sobre isso, não há pareceres definitivos nem que estabeleçam o fim de todas as dúvidas, mas o legado de Geraldo Pereira, esse sim, é inquestionável, basta uma ouvida de canto de orelha em “Escurinho” - companheiro da “Escurinha” também criada por ele - gravado com maestria por Roberto Silva, somente para uma pequena idéia do que se costuma falar a respeito do inventivo compositor, tanto desordeiro quanto talentoso.

"Um compositor tem que saber música, não ser que nem eu, que não sei de nada. Eu faço porque tá dentro de mim." Geraldo Pereira

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