segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A Hora do Coroa

Postado por Acir Antão on segunda-feira, novembro 01, 2010 with Faça um comentário
Homenagem que fizemos a Nelson Cavaquinho, no último domingo, com textos de Raphael Vidigal




O jeito de tocar o violão e o cavaquinho que lhe rendeu o apelido, beliscando as cordas com dois dedos, e a voz desafinada, sempre embargada de uma profunda tristeza, ajudam a compreender a essência daquele artista. Mergulhado na boêmia, Nelson Cavaquinho fazia da melancolia seu mote para compor sambas sinceros e profundos, como “Folhas Secas”, “A flor e o espinho” e “Quando eu me chamar saudade”, todas com Guilherme de Brito, além de criar a obra-prima “Luz Negra”, na qual mais uma vez se despedia da vida, alçada ao sucesso nas vozes de Nara Leão e Elizeth Cardoso. Sempre ligando o amor à tragédia, Nelson Cavaquinho foi um instrumentista, compositor e poeta que viveu a vida inspirado pela morte, e que soube tirar dela letras e melodias cheias de luz, mesmo negras, cheias de flores, mesmo que com espinhos e cheias de folhas, até mesmo as secas.



“A flor e o espinho” nasceu do cavaquinho de Nelson com a ajuda de mais um desses parceiros que ele conheceu nas mesas de boteco. Guilherme de Brito pediu a todos que tirassem o “sorriso do caminho”, pois ele ia passar com sua dor. O autor desses versos imponentes e tristonhos realmente conheceu Nelson em seu habitat preferido, mas diferente de outros “compositores de ocasião”, participou com poesia e não com dinheiro da canção gravada pelo cantor Raul Moreno, em 1957. O outro parceiro de Nelson na canção é Alcides Caminha, que só mais tarde teria sua identidade revelada, era o desenhista Carlos Zéfiro, famoso pelos quadrinhos eróticos nas décadas de 50 e 60. Escondido com sua voz nos porões do “Cabaré dos Bandidos”, Nelson só apareceria em disco em 1965, ao tocar seu violão rústico na música que era cantada por Elizeth Cardoso. O álbum chamava-se “Elizeth sobe o morro”. Nelson descia aos poucos para o estrelato.

Rugas

Nelson Antônio da Silva virou Cavaquinho depois que se enturmou nas rodas de choro com Edgar Flauta da Gávea, Heitor dos Prazeres, Mazinho do Bandolim e Juquinha, mas continuou assinando suas composições, quando assinava, como N. Silva. Isso porque tinha a mania de guardar as músicas na cabeça cheia de cachaça, e muitas delas se perderam. A primeira gravada foi “Não faça vontade a ela”, por Alcides Gerardi, onde já começou sua travessia empoeirada de trocar canções por favores. Henricão e Rubens Campos o ajudaram e foram incluídos como autores. Mas em 1943, o sambista Ciro Monteiro o conheceu e começou a remexer em seu repertório, pescando preciosidades até descobrir a música “Rugas”, de Nelson, Augusto Garcez e Ary Monteiro. No primeiro clássico do sambista que se fez no choro, Nelson dilacerava corações otimistas, ao definir a vida: “Feliz aquele que sabe sofrer”. Mais tarde ele diria como quem fala a um amigo: “Essa é uma das músicas que o Vinicius de Moraes e o Carlos Jobim me pedem pra cantar.”



Luz Negra

Nelson Cavaquinho costumava se esgueirar em qualquer tipo de bar que visse. E o Zicartola, do amigo Cartola e sua esposa Dona Zica, foi mais um desses onde ele firmou residência fixa, diferente do lar matrimonial, que deixava Alice, sua primeira esposa, quase sempre acompanhada apenas dos três filhos. Nelson conheceu o amigo dono do bar enquanto fazia uma ronda no morro de Mangueira, e logo fizeram uma música juntos: “Devia ser condenada”. Qual não foi a surpresa de Cartola quando um sujeito qualquer cantou-lhe o samba afirmando que a música era sua, pois a havia comprado de Nelson, que se justificou depois com o parceiro: “Mas eu só vendi a minha parte.” Apesar do incidente bastante praticado na vida de Nelson, ele era um dos convidados mais freqüentes da atração comandada por Cartola e que recebia bambas do porte de Zé Kéti, Paulinho da Viola e o bossanovista Carlinhos Lyra que passava por lá para espiar. Também vinda da bossa-nova, Nara Leão ouviu Nelson cantar “Luz Negra”, que na versão dedilhada por Baden Powell em 1961 tinha o nome de Irani Barros na parceria e quando foi lançada em 1964 o de Amâncio Cardoso. A canção saiu no disco em que a estrela do espetáculo “Opinião” também cantava músicas de Zé Kéti, Elton Medeiros e Cartola. Um ano depois, a música serviu de trilha para o filme “A Falecida”, adaptação de Leon Hirszman para a peça de Nelson Rodrigues, com orquestração de Radamés Gnatalli. Também em 1965, Nelson cantou seu lamento rumo à despedida no disco de Elizeth Cardoso, em que subiam o morro os sambistas Paulinho da Viola e Nelson Sargento.



Folhas secas

O pai de Nelson Cavaquinho chamava-se Brás Antônio da Silva, e era contramestre da Banda da Polícia Militar do Rio de Janeiro, onde tocava tuba, a mãe chamava-se Maria Paula da Silva, e lavava roupa para as freiras Carmelitas do convento de Santa Teresa. Da mãe, Nelson herdou a adoração fervorosa pela religião, e do pai, o gosto pela música. Unindo o estilo boêmio à religiosidade, Nelson criou verdadeiros clássicos do samba. O que só foi possível porque na juventude, quando ele não tinha dinheiro para comprar um instrumento, o jardineiro Ventura, que o assistia disputar “quedas” com os outros chorões, deu-lhe de presente um cavaquinho. Nelson deixou de pedir emprestado o auxílio feito de madeira dos outros músicos, entre eles Romualdo e Luperce Miranda, mas não parou de inovar. Ainda em criança, ele havia feito de uma tampa de caixa de charutos e barbantes esticados o necessário para tirar um som. No ano de 1973, lembrando com nostalgia sua mocidade, Nelson compôs ao lado do parceiro Guilherme de Brito, a essencial “Folhas Secas”, que prestava uma homenagem à querida Mangueira, onde ele conhecera o samba que o levaria por toda a vida. A música foi alvo de uma polêmica jamais resolvida entre Elis Regina e Beth Carvalho, que a lançaram no mesmo ano. Inicialmente dada para Beth gravar, foi levada pelo arranjador César Camargo Mariano para Elis. O resultado foram dois registros belíssimos para a música brasileira e uma desavença severa entre as duas intérpretes.



Degraus da vida

O verdadeiro mestre de Nelson Cavaquinho na arte de empunhar o instrumento foi o violonista Juquinha. Para ele, Nelson dedicou seu segundo choro, “Gargalhada”, que simbolizava o gesto do professor toda vez que o aluno vencia uma “queda”, ou seja, quando quem está solando consegue fazer com que os outros músicos se percam. Nessa época, ao se casar com Alice, Nelson passou a precisar de um emprego, e o pai resolveu alterar a sua certidão de nascimento para que ele pudesse ingressar na cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O casamento e o emprego deram-se na forma de obrigação pelo pai da moça e de Nelson. A boemia e o samba foram uma opção de vida. Por conta dessas controversas realidades, Nelson ficou um ano mais velho, e tirou da boca do pai doente a inspiração para compor “Degraus da Vida”, ao ouvi-lo dizer: “sei que estou no último quartel da vida.” Nelson trocou quartel por degrau e teve a música chorosa lançada por Roberto Silva em 1950 e relançada pelo mesmo Roberto em 1961. A parceria ainda rendeu a Nelson Cavaquinho cerca de cem mil réis, ao incluir o nome de César Brasil na autoria da canção. É que Nelson subia regularmente os degraus do hotel de César, que nunca escreveu um verso ou tocou uma nota musical na vida.



Pranto de poeta

Em suas andanças pelos subúrbios do Rio de Janeiro, Nelson Cavaquinho freqüentemente amarrava seu cavalo, conhecido como Vovô, em uma árvore no Morro de Mangueira e ia ao encontro de sambistas como Zé da Zilda, Carlos Cachaça e Cartola. Desde cedo conhecedor da alta malandragem carioca, representada por nomes como Brancura, Edgar e Camisa Preta, Nelson tornou-se amigo dos sambistas do morro a partir do emprego que conseguiu na polícia. Ficava horas bebendo cachaça e conversando com Cartola. Numa dessas, seu cavalo acabou fugindo e retornou sozinho para o Batalhão, o que ocasionou mais uma dentre as muitas prisões de Nelson, que habituado a ficar dias sem aparecer, aproveitava o tempo na cela para compor. Sobre esse episódio, Nelson diria em entrevista: ”E não é que o danado do cavalo tava rindo de mim quando cheguei no Batalhão?". No ano de 1938, antes de ser expulso da corporação, Nelson conseguiu dar baixa em seu cargo na polícia, separou-se de Alice e se entregou definitivamente ao samba e à boêmia. Em 1952 foi morar em Mangueira, onde permaneceu por um ano e meio, e em 1968, dividiu com Cartola, Clementina de Jesus, Carlos Cachaça e Odete Amaral os vocais de “Fala Mangueira”, produzido por Hermínio Bello de Carvalho. Já ao lado de Guilherme de Brito, ele compôs a música que seria lançada em 1957 por Lucy Rosana, gravada em 1965 por Nara Leão e interpretada em dueto nada sóbrio de sua parte por ele e Cartola, em 1977, “Pranto de Poeta”. A música exalta a Mangueira onde ele criou raízes e conheceu geniais sambistas que nortearam sua trôpega trajetória de brilho infindo.



Notícia

Não se sabe ao certo se Nelson Cavaquinho nasceu no dia 28 ou 29 de outubro, nem em que bairro. Sabe-se que ele mudou várias vezes de residência, sempre vagando com seu violão na vertical agarrado ao corpo moreno e pequeno, crispado na superfície por lisos cabelos brancos. Sem jamais se prender a nada, Nelson vivia sob a égide do momento ao mesmo tempo em que exalava angústias sobre a morte. Do tipo que não se importava com bens terrenos, era seu costume distribuir o dinheiro entre doses generosas de bebida e esmola a amigos. Por conta desse hábito, passava dias sem voltar para casa, e desfilava sua liberdade lisonjeira na Praça Tiradentes, vendendo samba em troca de guarida. Desse comportamento errático, nasceram casos folclóricos do andante boêmio. Milton Amaral conta que certa vez Nelson Cavaquinho vendeu tanto uma música, que o mesmo samba tinha 16 autores. Eduardo Gudin afirma que quando o apresentador de um programa de rádio perguntou a Nelson quais eram seus planos, ele respondeu distraído: “Meus planos? O Gudin vai passar aqui para me pegar e vamos beber no Bar do Alemão”. E o próprio Nelson contava que em uma madrugada quando sonhara que ia morrer ás três da manhã, acordou e adiou os ponteiros do relógio, que já marcavam quinze para as três. Dizia ele: “Nessa eu não vou”. Essas notícias que circulavam sobre Nelson revelavam uma personalidade oposta àquela que era exposta em suas canções. Nelson Cavaquinho era uma figura complexa, capaz de criar sambas de contenção religiosa em meio a pileques e orgia. “Notícia”, por exemplo é mais uma parceria sua com o obscuro Carlos Zéfiro, que assina sob o pseudônimo Alcides Caminha, além de Norival Bahia. A música lançada por Roberto Silva em 1955 e regravada por Nelson em 1977, no disco intitulado “Os Quatro Grandes do Samba”, que dividiu com Guilherme de Brito, Candeia e Elton Medeiros, traz as entranhas de um relacionamento entremeado por traições e amadurecimento.



Palhaço

No ano de 1951, a cantora Dalva de Oliveira, no auge de sua carreira, gravou a composição “Palhaço” de um ainda desconhecido Nelson Cavaquinho, que trazia na parceria os nomes de Oswaldo Martins e Washington Fernandes. Àquela altura, o violonista que abandonara o instrumento que dera-lhe o apelido, para empenhar uma arma mais suntuosa para seus cabelos brancos, havia sido gravado por Ciro Monteiro, Alcides Gerardi e Roberto Silva. Mas foi a gravação de Dalva que rendeu para Nelson seu maior sucesso até então. Na música, ele repetia o personagem que apareceria com freqüência em suas canções, o homem que teme a morte, o infeliz que agarra-se ao sofrimento, o palhaço que abandona o palco pra poder chorar.

Dona Carola

Os versos de uma das mais tocantes músicas de Nelson Cavaquinho deram a deixa perfeita para que em 1985, Cristina Buarque e Carlinhos Vergueiro pudessem arquitetar as matizes de “Flores em Vida”, disco em homenagem ao sambista que trazia as participações de Chico Buarque, Paulinho da Viola, João Bosco, Beth Carvalho, Toquinho, além do próprio Nelson cantando. O álbum, lançado um ano antes da morte do homenageado, foi recebido com festa na quadra da Mangueira, e trazia entre diversos sucessos, músicas menos conhecidas como “História de um Valente”, onde Nelson citava Noel Rosa, e “Pecado”, música que ele dividiu a autoria com Ligia Uchoa, mulher por quem se apaixonou ao encontrá-la sem teto na praça Tiradentes e de quem tatuou o nome no ombro direito, rendendo-lhe também outro samba “Tatuagem”. Em outra faixa que se tornou menos conhecida, Chico Buarque canta “Dona Carola”, partido-alto que põe à tona o lirismo espirituoso de Nelson Cavaquinho.



Juízo Final

O reconhecimento à obra de Nelson Cavaquinho começou a se dar de forma mais intensa na década de 60, embora ele mesmo não demonstrasse preocupação com isso. A partir das gravações de Ciro Monteiro, Nara Leão e Elizeth Cardoso, outros nomes passaram a se associar ao de Nelson, a exemplo da mangueirense Beth Carvalho, com quem ele participou do Projeto Pixinguinha em 1978, e da portelense Clara Nunes. Em 1970, ele próprio ganhou a oportunidade de gravar suas músicas em um disco que levava seu nome, lançado pelo selo Castelinho, que logo iria falir, tendo o registro que ser relançado em 1974 pela Continental. Nessa gravação, Nelson era entrevistado pelo jornalista Sérgio Cabral, a cronista Eneida e o apresentador Sargentelli, além de ser anunciado por Elizeth Cardoso e acompanhado por Altamiro Carrilho. Dois anos depois, Nelson lançou seu segundo LP, através da “Série Documento” da RCA Victor. E em 1973, seu derradeiro registro solo, onde cantava pela primeira vez ao lado do parceiro eterno Guilherme de Brito, com produção de Pelão, levado ao mercado pela Odeon. Nesse último, Nelson Cavaquinho tocava pela primeira vez em disco o instrumento do apelido. Com seu nome bastante consolidado no mercado, Clara Nunes lançou no seu álbum “Claridade” de 1975, a música esperançosa de Nelson que decretava a chegada do sol no seu horizonte, a vitória do bem sobre o mal, a luz a brilhar nos corações. O amor será eterno, era o seu “Juízo Final”.



Cuidado com a outra

A primeira cantora a realizar um trabalho apenas com músicas de Nelson Cavaquinho foi a alagoana Telma Soares, em seu disco intitulado “Telma Soares interpreta Nelson Cavaquinho”, com produção de Stanislaw Ponte Preta e arranjos de Radamés Gnatalli. O álbum saiu em 1966, e contava pela segunda vez em disco com a participação de Nelson, ao distribuir sua voz pitoresca em canções como “Rei sem trono”, “História de um valente” e “Cuidado com a outra”, essa uma sátira bem humorada que usava o pretexto do dia das mães para se perdoar a mulher amada. Mais tarde, o sucesso da canção veio através da gravação de Chico Buarque, em 1974.

Vou partir

São inúmeras as histórias que contam de parceiros fictícios de Nelson Cavaquinho, que nunca existiram como compositores, mas apenas como ajudantes diante dos arroubos anárquicos do poeta. Nelson Cavaquinho seguia seus ímpetos, e assim ia colecionando parceiros, amigos e mulheres. A última delas foi Durvalina, trinta anos mais nova, que Nelson conheceu aos mais de 50 anos de idade. Sua trajetória peculiar virou motivo para o cineasta Leon Hirszman gravar um curta-homenagem sobre ele, que saiu em 1969. Dos parceiros que teve na vida, muitos foram acompanhantes de boteco, poucos de poesia. Entre eles, destacam-se Guilherme de Brito, Carlos Cachaça, Zé Kéti, Cartola e Jair do Cavaquinho, companheiro até no apelido do sobrenome. Com Jair, Nelson criou a pérola “Vou partir”, gravada por Elizeth Cardoso em 1965, em que ele a acompanha com seu violão. Dessa vez, a despedida não era eterna, apenas enquanto durasse o carnaval.



Quando eu me chamar saudade

A dupla Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito eternizou verdadeiros petardos da poesia musical brasileira. Através das lentes de seus óculos grossos e sua voz rareando a cada novo frasco de inspiração e cachaça, Nelson Cavaquinho soube conferir à morte uma beleza intrínseca. Guilherme de Brito o acompanhou sem o mesmo alarde, mas com total compreensão nessa incessante procura da vida. A música lançada no disco solo de Nelson em 1972, foi composta anos antes pela dupla, e recebeu novos versos, que de início eram: “Eu tenho amigos, enquanto eu viver, eu tenho tudo, enquanto eu merecer, mas amanhã se eu morrer, a maior parte de meus amigos nem vem me ver”. A definitiva versão recebeu os belíssimos: “Sei que amanhã quando eu morrer, os meus amigos vão dizer, que eu tinha um bom coração, alguns até hão de chorar, e querer me homenagear, fazendo de ouro um violão”. O instinto de efemeridade do compositor era delineado nos versos finais da música, em que pedia “flores em vida”. A canção recebeu regravações de Nelson Gonçalves, Nora Ney e Noite Ilustrada, entre muitos outros. Eram os versos de nostalgia de um homem que percebeu o sofrimento e soube transformá-lo em poesia. Por mais que seus dedos belisquem as cordas do instrumento e sua voz saia desafinada, Nelson Cavaquinho caminha exultante por entre as folhas secas, passando com sua dor, emanando sua luz que já não tem cor, chama-se saudade.

"Feliz aquele que sabe sofrer" Nelson Cavaquinho


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